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FRATELLI TUTTI-Parte 7

CAPÍTULO V A POLÍTICA MELHOR 154. Para se tornar possível o desenvolvimento duma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a amizade social, é necessária a política melhor, a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum. Mas hoje, infelizmente, muitas vezes a política assume formas que dificultam o caminho para um mundo diferente. POPULISMOS E LIBERALISMOS 155. O desprezo pelos vulneráveis pode esconder-se em formas populistas que, demagogicamente, se servem deles para os seus fins, ou em formas liberais ao serviço dos interesses económicos dos poderosos. Em ambos os casos, é palpável a dificuldade de pensar num mundo aberto onde haja lugar para todos, que inclua os mais frágeis e respeite as diferentes culturas. Popular ou populista 156. Nos últimos anos, os termos «populismo» e «populista» invadiram os meios de comunicação e a linguagem em geral, perdendo assim o valor que poderiam conter para compor uma das polaridades da sociedade dividida. Chegou-se ao ponto de pretender classificar os indivíduos, os grupos, as sociedades e os governos a partir da divisão binária «populista» ou «não populista». Já não é possível que alguém manifeste a sua opinião sobre um tema qualquer, sem tentarem classificá-lo num desses dois polos: umas vezes para o desacreditar injustamente, outras para o exaltar desmedidamente. 157. Mas a pretensão de introduzir o populismo como chave de leitura da realidade social contém outro ponto fraco: ignora a legitimidade da noção de povo. A tentativa de fazer desaparecer da linguagem esta categoria poderia levar à eliminação da própria palavra «democracia», cujo significado é precisamente «governo do povo». Contudo, para afirmar que a sociedade é mais do que a mera soma de indivíduos, necessita-se do termo «povo». - 59 - A verdade é que há fenómenos sociais que estruturam as maiorias, existem megatendências e aspirações comunitárias; além disso, pode-se pensar em objetivos comuns, independentemente das diferenças, para implementar juntos um projeto compartilhado; enfim, é muito difícil projetar algo de grande a longo prazo, se não se consegue torná-lo um sonho coletivo. Tudo isto está expresso no substantivo «povo» e no adjetivo «popular». Se não se incluíssem na linguagem – juntamente com uma sólida crítica da demagogia –, ter-se-ia renunciado a um aspeto fundamental da realidade social. 158. Subjacente encontra-se um mal-entendido. «Povo não é uma categoria lógica, nem uma categoria mística, no sentido de que tudo o que faz o povo é bom, ou no sentido de que o povo seja uma entidade angelical. É uma categoria mítica. (...) Quando explicas o que é um povo, recorres a categorias lógicas porque precisas de o descrever: é verdade, elas são necessárias. Mas, deste modo, não consegues explicar o sentido de pertença a um povo; a palavra povo tem algo mais que não se pode explicar logicamente. Pertencer a um povo é fazer parte duma identidade comum, formada por vínculos sociais e culturais. E isto não é algo de automático; muito pelo contrário: é um processo lento e difícil... rumo a um projeto comum». 132 159. Existem líderes populares, capazes de interpretar o sentir dum povo, a sua dinâmica cultural e as grandes tendências duma sociedade. O serviço que prestam, congregando e guiando, pode ser a base para um projeto duradouro de transformação e crescimento, que implica também a capacidade de ceder o lugar a outros na busca do bem comum. Mas degenera num populismo insano, quando se transforma na habilidade de alguém atrair consensos a fim de instrumentalizar politicamente a cultura do povo, sob qualquer sinal ideológico, ao serviço do seu projeto pessoal e da sua permanência no poder. Outras vezes, procura aumentar a popularidade fomentando as inclinações mais baixas e egoístas dalguns setores da população. E o caso agrava-se quando se pretende, com formas rudes ou subtis, o servilismo das instituições e da legalidade. 160. Os grupos populistas fechados deformam a palavra «povo», porque aquilo de que falam não é um verdadeiro povo. De facto, a categoria «povo» é aberta. Um povo vivo, 132 ANTONIO SPADARO sj, «Le orme di un pastore. Una conversazione con Papa Francesco», in JORGE MARIO BERGOGLIO – PAPA FRANCISCO, Nei tuoi occhi è la mia parola. Omelie e discorsi di Buenos Aires 1999-2013 (Milão 2016), XVI; cf. FRANCISCO, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 220-221: AAS 105 (2013), 1110-1111. - 60 - dinâmico e com futuro é aquele que permanece constantemente aberto a novas sínteses assumindo em si o que é diverso. E fá-lo, não se negando a si mesmo, mas com a disposição de se deixar mover, interpelar, crescer, enriquecer por outros; e, assim, pode evoluir. 161. Outra expressão degenerada duma autoridade popular é a busca do interesse imediato. Responde-se a exigências populares, com o fim de ter garantido os votos ou o apoio do povo, mas sem avançar numa tarefa árdua e constante que proporcione às pessoas os recursos para o seu desenvolvimento, de modo que possam sustentar a vida com o seu esforço e criatividade. Nesta linha, deixei claro: «longe de mim propor um populismo irresponsável». 133 Por um lado, a superação da desigualdade requer que se desenvolva a economia, fazendo frutificar as potencialidades de cada região e assegurando assim uma equidade sustentável; 134 por outro, «os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias». 135 162. A grande questão é o trabalho. Ser verdadeiramente popular – porque promove o bem do povo – é garantir a todos a possibilidade de fazer germinar as sementes que Deus colocou em cada um, as suas capacidades, a sua iniciativa, as suas forças. Esta é a melhor ajuda para um pobre, o melhor caminho para uma existência digna. Por isso, insisto que «ajudar os pobres com o dinheiro deve sempre ser um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho». 136 Por mais que mudem os sistemas de produção, a política não pode renunciar ao objetivo de conseguir que a organização duma sociedade assegure a cada pessoa uma maneira de contribuir com as suas capacidades e o seu esforço. Com efeito, «não há pobreza pior do que aquela que priva do trabalho e da dignidade do trabalho». 137 Numa sociedade realmente desenvolvida, o trabalho é uma dimensão essencial da vida social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas também um meio para o crescimento pessoal, para estabelecer relações sadias, expressar-se a si próprio, partilhar 133 Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 204: AAS 105 (2013), 1106. 134 Cf. ibid., 204: o. c., 1105-1106. 135 Ibid., 202: o. c., 1105. 136 Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 128: AAS 107 (2015), 898. 137 FRANCISCO, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (12 de janeiro de 2015): AAS 107 (2015), 165; cf. IDEM, Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos Populares (28 de outubro de 2014): AAS 106 (2014), 851-859. - 61 - dons, sentir-se corresponsável no desenvolvimento do mundo e, finalmente, viver como povo. Valores e limites das visões liberais 163. A categoria de povo, que inclui intrinsecamente uma avaliação positiva dos vínculos comunitários e culturais, habitualmente é rejeitada pelas visões liberais individualistas, que consideram a sociedade como uma mera soma de interesses que coexistem. Falam de respeito pelas liberdades, mas sem a raiz duma narrativa comum. Em certos contextos, é frequente acusar como populistas quantos defendem os direitos dos mais frágeis da sociedade. Para as referidas visões, a categoria de povo é uma mitificação de algo que não existe na realidade. Aqui, porém, cria-se uma polarização desnecessária, pois nem a ideia de povo nem a de próximo são categorias puramente míticas ou românticas que excluam ou desprezem a organização social, a ciência e as instituições da sociedade civil.138 164. A caridade reúne as duas dimensões – a mítica e a institucional –, pois implica um caminho eficaz de transformação da história que exige incorporar tudo: instituições, direito, técnica, experiência, contribuições profissionais, análise científica, procedimentos administrativos… Porque, «de facto, não há vida privada, se não for protegida por uma ordem pública; um lar acolhedor doméstico não tem intimidade, se não estiver sob a tutela da legalidade, dum estado de tranquilidade fundado na lei e na força e com a condição dum mínimo de bem-estar garantido pela divisão do trabalho, pelas trocas comerciais, pela justiça social e pela cidadania política». 139 165. A verdadeira caridade é capaz de incluir tudo isto na sua dedicação; e se se deve expressar no encontro de pessoa a pessoa, também consegue chegar a uma irmã, a um irmão distante e até desconhecido através dos vários recursos que as instituições duma sociedade organizada, livre e criativa são capazes de gerar. Se voltarmos ao caso do bom samaritano, vemos que até ele precisou da existência duma estalagem que lhe permitisse resolver o que não estava em condições de garantir sozinho, naquele momento. O amor ao próximo é realista, e não desperdiça nada que seja necessário para uma transformação da história que beneficie os últimos. Às vezes deparamo-nos com ideologias de esquerda 138 Algo parecido podemos dizer da categoria bíblica «Reino de Deus». 139 PAUL RICOEUR, «Le socius et le prochain», in: IDEM, Histoire et vérité (Paris 1967), 122. - 62 - ou pensamentos sociais cultivando hábitos individualistas e procedimentos ineficazes, porque beneficiam a poucos; entretanto a multidão dos abandonados fica à mercê da possível boa vontade de alguns. Isto demonstra que é necessário fazer crescer não só uma espiritualidade da fraternidade, mas também e ao mesmo tempo uma organização mundial mais eficiente para ajudar a resolver os problemas prementes dos abandonados que sofrem e morrem nos países pobres. Naturalmente isto implica que não exista apenas uma possível via de saída, uma única metodologia aceitável, uma receita económica aplicável igualmente por todos, e pressupõe que mesmo a ciência mais rigorosa possa propor percursos diferentes. 166. A consistência de tudo isto poderá ser bem pouca, se perdermos a capacidade de reconhecer a necessidade duma mudança nos corações humanos, nos hábitos e estilos de vida. É o que acontece quando a propaganda política, os meios e os criadores de opinião pública persistem em fomentar uma cultura individualista e ingénua à vista de interesses económicos desenfreados e da organização das sociedades ao serviço daqueles que já têm demasiado poder. Por isso, a minha crítica ao paradigma tecnocrático não significa que só procurando controlar os seus excessos é que poderemos estar seguros, já que o perigo maior não está nas coisas, nas realidades materiais, nas organizações, mas no modo como as pessoas se servem delas. A questão é a fragilidade humana, a tendência humana constante para o egoísmo, que faz parte daquilo que a tradição cristã chama «concupiscência»: a inclinação do ser humano a fechar-se na imanência do próprio eu, do seu grupo, dos seus interesses mesquinhos. Esta concupiscência não é um defeito do nosso tempo; existe desde que o homem é homem, limitando-se simplesmente a transformar-se, adquirir modalidades diferentes no decorrer dos séculos, utilizando os instrumentos que o momento histórico coloca à sua disposição. Mas, é possível dominá-la com a ajuda de Deus. 167. A tarefa educativa, o desenvolvimento de hábitos solidários, a capacidade de pensar a vida humana de forma mais integral, a profundidade espiritual são realidades necessárias para dar qualidade às relações humanas, de tal modo que seja a própria sociedade a reagir face às próprias injustiças, às aberrações, aos abusos dos poderes económicos, tecnológicos, políticos e mediáticos. Há visões liberais que ignoram este fator da fragilidade humana e imaginam um mundo que corresponda a uma determinada ordem que poderia, por si só, assegurar o futuro e a solução de todos os problemas. - 63 - 168. O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja. O neoliberalismo reproduzse sempre igual a si mesmo, recorrendo à mágica teoria do «derrame» ou do «gotejamento» – sem a nomear – como única via para resolver os problemas sociais. Não se dá conta de que a suposta redistribuição não resolve a desigualdade, sendo, esta, fonte de novas formas de violência que ameaçam o tecido social. Por um lado, é indispensável uma política económica ativa, visando «promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a criatividade empresarial», 140 para ser possível aumentar os postos de trabalho em vez de os reduzir. A especulação financeira, tendo a ganância de lucro fácil como objetivo fundamental, continua a fazer estragos. Por outro lado, «sem formas internas de solidariedade e de confiança mútua, o mercado não pode cumprir plenamente a própria função económica. E, hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar». 141 O fim da história não foi como previsto, tendo as receitas dogmáticas da teoria económica imperante demonstrado que elas mesmas não são infalíveis. A fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política saudável que não esteja sujeita aos ditames das finanças, «devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos». 142 169. Em determinadas visões económicas fechadas e monocromáticas, parece que não têm lugar, por exemplo, os Movimentos Populares que reúnem desempregados, trabalhadores precários e informais e tantos outros que não entram facilmente nos canais já estabelecidos. Na realidade, criam variadas formas de economia popular e de produção comunitária. É necessário pensar a participação social, política e económica segundo modalidades tais «que incluam os movimentos populares e animem as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com aquela torrente de energia moral que nasce da integração dos excluídos na construção do destino comum» e, por sua vez, se incentive a que «estes movimentos, estas experiências de solidariedade que crescem de baixo, do subsolo do planeta, confluam, sejam mais coordenados, se encontrem». 143 Mas fazê-lo sem trair o seu estilo caraterístico, porque são «semeadores de mudanças, promotores de 140 FRANCISCO, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 129: AAS 107 (2015), 899. 141 BENTO XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 35: AAS 101 (2009), 670. 142 FRANCISCO, Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos Populares (28 de outubro de 2014): AAS 106 (2014), 858. 143 Ibidem. - 64 - um processo para o qual convergem milhões de pequenas e grandes ações interligadas de modo criativo, como numa poesia». 144 Neste sentido, são «poetas sociais» que à sua maneira trabalham, propõem, promovem e libertam. Com eles, será possível um desenvolvimento humano integral, que implica superar «a ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres, e muito menos inserida num projeto que reúna os povos». 145 Embora incomodem e mesmo se alguns «pensadores» não sabem como classificá-los, é preciso ter a coragem de reconhecer que, sem eles, «a democracia atrofia-se, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade, vai-se desencarnando porque deixa fora o povo na sua luta diária pela dignidade, na construção de seu destino». 146 O PODER INTERNACIONAL 170. Deixai-me repetir aqui que «a crise financeira dos anos 2007 e 2008 era a ocasião para o desenvolvimento duma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira especulativa e da riqueza virtual. Mas não houve uma reação que fizesse repensar os critérios obsoletos que continuam a governar o mundo». 147 Antes pelo contrário, parece que as reais estratégias, posteriormente desenvolvidas no mundo, se têm orientado para maior individualismo, menor integração, maior liberdade para os que são verdadeiramente poderosos e sempre encontram maneira de escapar ilesos. 171. Gostaria de insistir no facto que «dar a cada um o que lhe é devido, segundo a definição clássica de justiça, significa que nenhum indivíduo ou grupo humano se pode considerar omnipotente, autorizado a pisar a dignidade e os direitos dos outros indivíduos ou dos grupos sociais. A efetiva distribuição do poder, sobretudo político, económico, militar e tecnológico, entre uma pluralidade de sujeitos e a criação dum sistema jurídico de regulação das reivindicações e dos interesses realiza a limitação do poder. Mas, hoje, 144 IDEM, Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos Populares (5 de novembro de 2016): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 10/XI/2016), 10. 145 Ibid.: o. c., 12. 146 Ibidem. 147 Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 189: AAS 107 (2015), 922. - 65 - o panorama mundial apresenta-nos muitos direitos falsos e, ao mesmo tempo, amplos setores sem proteção, vítimas inclusivamente dum mau exercício do poder». 148 172. O século XXI «assiste a uma perda de poder dos Estados nacionais, sobretudo porque a dimensão económico-financeira, de carater transnacional, tende a prevalecer sobre a política. Neste contexto, torna-se indispensável a maturação de instituições internacionais mais fortes e eficazmente organizadas, com autoridades designadas de maneira imparcial por meio de acordos entre governos nacionais e dotadas de poder de sancionar». 149 Quando se fala duma possível forma de autoridade mundial regulada pelo direito, 150 não se deve necessariamente pensar numa autoridade pessoal. Mas deveria prever pelo menos a criação de organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais. 173. Nesta linha, lembro que é necessária uma reforma «quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitetura económica e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações». 151 Isto pressupõe, sem dúvida, limites jurídicos precisos para evitar que seja uma autoridade cooptada por poucos países e, ao mesmo tempo, para impedir imposições culturais ou a redução das liberdades básicas das nações mais frágeis por causa de diferenças ideológicas. Na verdade, «a comunidade internacional é uma comunidade jurídica fundada sobre a soberania de cada Estadomembro, sem vínculos de subordinação que neguem ou limitem a cada qual a sua independência». 152 Com efeito, «a tarefa das Nações Unidas, com base nos postulados do Preâmbulo e dos primeiros artigos da sua Carta constitucional, pode ser vista como o desenvolvimento e a promoção da soberania do direito, sabendo que a justiça é um requisito indispensável para se realizar o ideal da fraternidade universal. (…) É preciso garantir o domínio incontrastado do direito e o recurso incansável às negociações, aos mediadores e à arbitragem, como é proposto pela Carta das Nações Unidas, verdadeira 148 Discurso à Organização das Nações Unidas (Nova Iorque – Estados Unidos d’América 25 de setembro de 2015): AAS 107 (2015), 1037. 149 FRANCISCO, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 175: AAS 107 (2015), 916-917. 150 Cf. BENTO XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 67: AAS 101 (2009), 700-701. 151 Ibid., 67: o. c., 700. 152 CONSELHO PONTIFÍCIO «JUSTIÇA E PAZ», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 434. - 66 - norma jurídica fundamental». 153 É necessário evitar que esta Organização seja deslegitimada, pois os seus problemas ou deficiências podem ser enfrentados e resolvidos em conjunto. 174. Requer-se coragem e generosidade para estabelecer livremente certos objetivos comuns e assegurar o cumprimento em todo o mundo dalgumas normas essenciais. Para que isto seja verdadeiramente útil, deve-se apoiar «a exigência de fazer fé nos compromissos subscritos (pacta sunt servanda)», 154 a fim de evitar «a tentação de fazer apelo mais ao direito da força que à força do direito». 155 Nesta perspetiva, «os instrumentos normativos para a solução pacífica das controvérsias devem ser repensados de tal modo que lhes sejam reforçados o alcance e a obrigatoriedade». 156 Dentre esses instrumentos normativos, há que favorecer os acordos multilaterais entre os Estados, porque garantem melhor do que os acordos bilaterais o cuidado dum bem comum realmente universal e a tutela dos Estados mais vulneráveis. 175. Graças a Deus, muitos grupos e organizações da sociedade civil ajudam a compensar as debilidades da Comunidade Internacional, a sua falta de coordenação em situações complexas, a sua carência de atenção relativamente a direitos humanos fundamentais e a situações muito críticas de alguns grupos. Assim, adquire uma expressão concreta o princípio da subsidiariedade, que garante a participação e a ação das comunidades e organizações de nível menor, que integram de modo complementar a ação do Estado. Muitas vezes, realizam esforços admiráveis com o pensamento no bem comum, e alguns dos seus membros chegam a cumprir gestos verdadeiramente heroicos que mostram de quanta bondade ainda é capaz a nossa humanidade. UMA CARIDADE SOCIAL E POLÍTICA 176. Atualmente muitos possuem uma má noção da política, e não se pode ignorar que frequentemente, por trás deste facto, estão os erros, a corrupção e a ineficiência de alguns políticos. A isto vêm juntar-se as estratégias que visam enfraquecê-la, substituí-la pela 153 FRANCISCO, Discurso à Organização das Nações Unidas (Nova Iorque – Estados Unidos d’América 25 de setembro de 2015): AAS 107 (2015), 1037 e 1041. 154 CONSELHO PONTIFÍCIO «JUSTIÇA E PAZ», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 437. 155 SÃO JOÃO PAULO II, Mensagem para o 37º Dia Mundial da Paz de 2004 (8 de dezembro de 2003), 5: AAS 96 (2004), 117. 156 CONSELHO PONTIFÍCIO «JUSTIÇA E PAZ», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 439. - 67 - economia ou dominá-la por alguma ideologia. E contudo poderá o mundo funcionar sem política? Poderá encontrar um caminho eficaz para a fraternidade universal e a paz social sem uma boa política?157 A política necessária 177. Gostaria de insistir que «a política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia». 158 Embora se deva rejeitar o mau uso do poder, a corrupção, a falta de respeito das leis e a ineficiência, «não se pode justificar uma economia sem política, porque seria incapaz de promover outra lógica para governar os vários aspetos da crise atual». 159 Pelo contrário, «precisamos duma política que pense com visão ampla e leve por diante uma reformulação integral, abrangendo num diálogo interdisciplinar os vários aspetos da crise». 160 Penso numa «política salutar, capaz de reformar as instituições, coordená-las e dotá-las de bons procedimentos, que permitam superar pressões e inércias viciosas». 161 Não se pode pedir isto à economia, nem aceitar que ela assuma o poder real do Estado. 178. Perante tantas formas de política mesquinhas e fixadas no interesse imediato, lembro que «a grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis, se trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo. O poder político tem muita dificuldade em assumir este dever num projeto de nação» 162 e, mais ainda, num projeto comum para a humanidade presente e futura. Pensar nos que hão de vir não tem utilidade para fins eleitorais, mas é o que exige uma justiça autêntica, porque, como ensinaram os bispos de Portugal, a terra «é um empréstimo que cada geração recebe e deve transmitir à geração seguinte». 163 157 Cf. CONFERÊNCIA DOS BISPOS DE FRANÇA (Comissão Social), Declaração Réhabiliter la politique (17 de fevereiro de 1999). 158 Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 189: AAS 107 (2015), 922. 159 Ibid., 196: o. c., 925. 160 Ibid., 197: o. c., 925. 161 Ibid., 181: o. c., 919. 162 Ibid., 178: o. c., 918. 163 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, Carta pastoral Responsabilidade solidária pelo bem comum (15 de setembro de 2003), 20; cf. FRANCISCO, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 159: AAS 107 (2015), 914. - 68 - 179. A sociedade mundial tem graves carências estruturais que não se resolvem com remendos ou soluções rápidas meramente ocasionais. Há coisas que devem ser mudadas com reajustamentos profundos e transformações importantes. E só uma política sã poderia conduzir o processo, envolvendo os mais diversos setores e os conhecimentos mais variados. Desta forma, uma economia integrada num projeto político, social, cultural e popular que vise o bem comum pode «abrir caminho a oportunidades diferentes, que não implica frenar a criatividade humana nem o seu sonho de progresso, mas orientar esta energia por novos canais». 164 O amor político 180. Reconhecer todo o ser humano como um irmão ou uma irmã e procurar uma amizade social que integre a todos não são meras utopias. Exigem a decisão e a capacidade de encontrar os percursos eficazes, que assegurem a sua real possibilidade. Todo e qualquer esforço nesta linha torna-se um exercício alto da caridade. Com efeito, um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada, mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entra no «campo da caridade mais ampla, a caridade política». 165 Trata-se de avançar para uma ordem social e política, cuja alma seja a caridade social.166 Convido uma vez mais a revalorizar a política, que «é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas de caridade, porque busca o bem comum». 167 181. Todos os compromissos decorrentes da doutrina social da Igreja «derivam da caridade que é – como ensinou Jesus – a síntese de toda a Lei (cf. Mt 22, 36-40)». 168 Isto exige reconhecer que «o amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor». 169 Por este motivo, o amor expressa-se não só nas relações íntimas e próximas, 164 FRANCISCO, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 191: AAS 107 (2015), 923. 165 PIO XI, Discurso à Federação Universitária Católica Italiana (18 de dezembro de 1927): L’Osservatore Romano (23/XII/1927), 3. 166 Cf. IDEM, Carta enc. Quadragesimo anno (15 de maio de 1931), 88: AAS 23 (1931), 206-207. 167 Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 205: AAS 105 (2013), 1106. 168 BENTO XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 2: AAS 101 (2009), 642. 169 FRANCISCO, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 231: AAS 107 (2015), 937. - 69 - mas também nas «macrorrelações como relacionamentos sociais, económicos e políticos». 170 182. Esta caridade política supõe ter maturado um sentido social que supere toda a mentalidade individualista: «A caridade social leva-nos a amar o bem comum e a buscar efetivamente o bem de todas as pessoas, consideradas não só individualmente, mas também na dimensão social que as une». 171 Cada um é plenamente pessoa quando pertence a um povo e, vice-versa, não há um verdadeiro povo sem referência ao rosto de cada pessoa. Povo e pessoa são termos correlativos. Contudo, hoje, pretende-se reduzir as pessoas a indivíduos facilmente manipuláveis por poderes que visam interesses ilegítimos. A boa política procura caminhos de construção de comunidade nos diferentes níveis da vida social, a fim de reequilibrar e reordenar a globalização para evitar os seus efeitos desagregadores. Amor eficaz 183. A partir do «amor social», 172 é possível avançar para uma civilização do amor a que todos nos podemos sentir chamados. Com o seu dinamismo universal, a caridade pode construir um mundo novo,173 porque não é um sentimento estéril, mas o modo melhor de alcançar vias eficazes de desenvolvimento para todos. O amor social é uma «força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e renovar profundamente, desde o interior, as estruturas, organizações sociais, ordenamentos jurídicos». 174 184. A caridade está no centro de toda a vida social sadia e aberta. Todavia, hoje, «não é difícil ouvir declarar a sua irrelevância para interpretar e orientar as responsabilidades morais». 175 É muito mais do que um sentimentalismo subjetivo, naturalmente se aparece unida ao compromisso com a verdade, para que não acabe «prisioneira das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos». 176 É precisamente a relação da caridade com a 170 BENTO XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 2: AAS 101 (2009), 642. 171 CONSELHO PONTIFÍCIO «JUSTIÇA E PAZ», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 207. 172 SÃO JOÃO PAULO II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de março de 1979), 15: AAS 71 (1979), 288. 173 Cf. SÃO PAULO VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 44: AAS 59 (1967), 279. 174 CONSELHO PONTIFÍCIO «JUSTIÇA E PAZ», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 207. 175 BENTO XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 2: AAS 101 (2009), 642. 176 Ibid., 3: o. c., 643. - 70 - verdade que favorece o seu universalismo, evitando assim que ela acabe «confinada num âmbito restrito e carente de relações». 177 Caso contrário, será «excluída dos projetos e processos de construção dum desenvolvimento humano de alcance universal, no diálogo entre o saber e a realização prática». 178 Privada da verdade, a emotividade fica sem conteúdos relacionais e sociais. Por isso, a abertura à verdade protege a caridade duma fé falsa, que a priva de «amplitude humana e universal». 179 185. A caridade precisa da luz da verdade, que buscamos constantemente, e «esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé», 180 sem relativismos. Isto supõe também o desenvolvimento das ciências e a sua contribuição insubstituível para encontrar os percursos concretos e mais seguros para alcançar os resultados esperados. Com efeito, quando está em jogo o bem dos outros, não bastam as boas intenções, mas é preciso conseguir efetivamente aquilo de que eles e seus países necessitam para se realizar. A ATIVIDADE DO AMOR POLÍTICO 186. Existe o chamado amor «elícito»: expressa os atos que brotam diretamente da virtude da caridade, dirigidos a pessoas e povos. Mas há também um amor «imperado»: traduz os atos de caridade que nos impelem a criar instituições mais sadias, regulamentos mais justos, estruturas mais solidárias. 181 Por isso, é «um ato de caridade, igualmente indispensável, o empenho com o objetivo de organizar e estruturar a sociedade de modo que o próximo não se venha a encontrar na miséria». 182 É caridade acompanhar uma pessoa que sofre, mas é caridade também tudo o que se realiza – mesmo sem ter contacto direto com essa pessoa – para modificar as condições sociais que provocam o seu sofrimento. Alguém ajuda um idoso a atravessar um rio, e isto é caridade primorosa; mas o político constrói-lhe uma ponte, e isto também é caridade. É caridade se alguém ajuda 177 Ibid., 4: o. c., 643. 178 Ibidem. 179 Ibid., 3: o. c., 643. 180 Ibid., 3: o. c., 642. 181 A doutrina moral católica, na esteira do ensinamento de São Tomás de Aquino, prevê esta distinção de ato «elícito» e ato «imperado» [cf. Summa theologiae, I-II, q. 8-17; veja-se também MARCELLINO ZALBA sj, Theologiae moralis summa. Theologia moralis fundamentalis. Tractatus de virtutibus theologicis, I (Madrid 1952), 69; ANTONIO ROYO MARÍN op, Teología de la Perfección Cristiana (Madrid 1962), 192-196]. 182 CONSELHO PONTIFÍCIO «JUSTIÇA E PAZ», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 208. - 71 - outra pessoa fornecendo-lhe comida, mas o político cria-lhe um emprego, exercendo uma forma sublime de caridade que enobrece a sua ação política. Os sacrifícios do amor 187. Esta caridade, coração do espírito da política, é sempre um amor preferencial pelos últimos, que subjaz a todas as ações realizadas em seu favor.183 Só com um olhar cujo horizonte esteja transformado pela caridade, levando-nos a perceber a dignidade do outro, é que os pobres são reconhecidos e apreciados na sua dignidade imensa, respeitados no seu estilo próprio e cultura e, por conseguinte, verdadeiramente integrados na sociedade. Um tal olhar é o núcleo do autêntico espírito da política. Os caminhos que se abrem a partir dele, são diferentes dos caminhos dum pragmatismo sem alma. Por exemplo, «não se pode enfrentar o escândalo da pobreza promovendo estratégias de contenção que só tranquilizam e transformam os pobres em seres domesticados e inofensivos. Como é triste ver que, por detrás de presumíveis obras altruístas, o outro é reduzido à passividade». 184 O necessário é haver distintos canais de expressão e participação social. A educação está ao serviço deste caminho, para que cada ser humano possa ser artífice do seu destino. Demonstra aqui o seu valor o princípio de subsidiariedade, inseparável do princípio de solidariedade. 188. Isto demonstra a urgência de se encontrar uma solução para tudo o que atenta contra os direitos humanos fundamentais. Os políticos são chamados a «cuidar da fragilidade, da fragilidade dos povos e das pessoas. Cuidar da fragilidade quer dizer força e ternura, luta e fecundidade, no meio dum modelo funcionalista e individualista que conduz inexoravelmente à “cultura do descarte” (…); significa assumir o presente na sua situação mais marginal e angustiante e ser capaz de ungi-lo de dignidade». 185 Embora acarrete certamente imenso trabalho, «que tudo se faça para tutelar a condição e a dignidade da pessoa humana»! 186 O político é operoso, é um construtor com grandes objetivos, com 183 Cf. SÃO JOÃO PAULO II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de dezembro de 1987), 42: AAS 80 (1988), 572-574; IDEM, Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 11: AAS 83 (1991), 806-807. 184 FRANCISCO, Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos Populares (28 de outubro de 2014): AAS 106 (2014), 852. 185 FRANCISCO, Discurso no Parlamento Europeu (Estrasburgo – França 25 de novembro de 2014): AAS 106 (2014), 999. 186 IDEM, Discurso no encontro com as autoridades e o corpo diplomático (Bangui – República CentroAfricana 29 de novembro de 2015): AAS 107 (2015), 1320. - 72 - olhar amplo, realista e pragmático, inclusive para além do seu próprio país. As maiores preocupações dum político não deveriam ser as causadas por uma descida nas sondagens, mas por não encontrar uma solução eficaz para «o fenómeno da exclusão social e económica, com suas tristes consequências de tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de meninos e meninas, trabalho escravo, incluindo a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e criminalidade internacional organizada. Tal é a magnitude destas situações e o número de vidas inocentes envolvidas que devemos evitar qualquer tentação de cair num nominalismo declamatório com efeito tranquilizador sobre as consciências. Devemos ter cuidado com as nossas instituições para que sejam realmente eficazes na luta contra estes flagelos». 187 Consegue-se isto, aproveitando de forma inteligente os grandes recursos do desenvolvimento tecnológico. 189. Ainda estamos longe duma globalização dos direitos humanos mais essenciais. Por isso a política mundial não pode deixar de colocar entre seus objetivos principais e irrenunciáveis o de eliminar efetivamente a fome. Com efeito, «quando a especulação financeira condiciona o preço dos alimentos, tratando-os como uma mercadoria qualquer, milhões de pessoas sofrem e morrem de fome. Por outro lado, descartam-se toneladas de alimentos. Isto constitui um verdadeiro escândalo. A fome é criminosa, a alimentação é um direito inalienável». 188 Muitas vezes hoje, enquanto nos enredamos em discussões semânticas ou ideológicas, deixamos que irmãos e irmãs morram ainda de fome ou de sede, sem um teto ou sem acesso a serviços de saúde. Juntamente com estas necessidades elementares por satisfazer, outra vergonha para a humanidade que a política internacional não deveria continuar a tolerar – não se ficando por discursos e boas intenções – é o tráfico de pessoas. Trata-se daquele mínimo que não se pode adiar mais. Amor que integra e reúne 190. A caridade política expressa-se também na abertura a todos. Sobretudo o governante é chamado a renúncias que tornem possível o encontro, procurando a convergência pelo menos nalguns temas. Sabe escutar o ponto de vista do outro, facilitando um espaço a todos. Com renúncias e paciência, um governante pode ajudar a 187 IDEM, Discurso à Organização das Nações Unidas (Nova Iorque – Estados Unidos d’América 25 de setembro de 2015): AAS 107 (2015), 1039. 188 FRANCISCO, Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos Populares (28 de outubro de 2014): AAS 106 (2014), 853. - 73 - criar aquele poliedro bom onde todos encontram um lugar. Nisto, não resultam as negociações de tipo económico; é algo mais: é um intercâmbio de dons a favor do bem comum. Parece uma utopia ingénua, mas não podemos renunciar a este sublime objetivo. 191. Vendo que todo o tipo de intolerância fundamentalista danifica as relações entre pessoas, grupos e povos, comprometamo-nos a viver e ensinar o valor do respeito, o amor capaz de aceitar as várias diferenças, a prioridade da dignidade de todo o ser humano sobre quaisquer ideias, sentimentos, atividades e até pecados que possa ter. Enquanto os fanatismos, as lógicas fechadas e a fragmentação social e cultural proliferam na sociedade atual, um bom político dá o primeiro passo para que se ouçam as diferentes vozes. É verdade que as diferenças geram conflitos, mas a uniformidade gera asfixia e neutralizanos culturalmente. Não nos resignemos a viver fechados num fragmento da realidade. 192. Neste contexto, gostaria de lembrar que eu juntamente com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb pedimos «aos artífices da política internacional e da economia mundial, para se comprometer seriamente na difusão da tolerância, da convivência e da paz; para intervir, o mais breve possível, a fim de se impedir o derramamento de sangue inocente». 189 E quando uma determinada política semeia o ódio e o medo em relação a outras nações em nome do bem do próprio país, é necessário estar alerta, reagir a tempo e corrigir imediatamente o rumo. MAIS FECUNDIDADE QUE RESULTADOS 193. Ao mesmo tempo que realiza esta atividade incansável, cada político permanece um ser humano, chamado a viver o amor nas suas relações interpessoais diárias. É uma pessoa e precisa de se dar conta que «o mundo moderno, devido à sua perfeição técnica, tende a racionalizar cada vez mais a satisfação dos desejos humanos, classificados e distribuídos entre vários serviços. Um homem é chamado cada vez menos pelo seu próprio nome, cada vez menos será tratado como pessoa este ser, único no mundo, que tem o seu próprio coração, os seus sofrimentos, problemas e alegrias e a sua própria família. Só se conhecerão as suas doenças para tratá-las, a sua falta de dinheiro para fornecê-lo, a sua necessidade de casa para alojá-lo, o seu desejo de lazer e de distrações para lhos 189 Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 21. - 74 - organizar». E contudo «amar o mais insignificante dos seres humanos como a um irmão, como se existisse apenas ele no mundo, não é perder tempo». 190 194. Na política, há lugar também para amar com ternura. «Em que consiste a ternura? No amor, que se torna próximo e concreto. É um movimento que brota do coração e chega aos olhos, aos ouvidos e às mãos. (...) A ternura é o caminho que percorreram os homens e as mulheres mais corajosos e fortes». 191 No meio da atividade política, «os mais pequeninos, frágeis e pobres devem enternecer-nos: eles têm o “direito” de arrebatar a nossa alma, o nosso coração. Sim, eles são nossos irmãos e, como tais, devemos amá-los e tratá-los». 192 195. Isto ajuda-nos a reconhecer que nem sempre se trata de obter grandes resultados, que às vezes não são possíveis. Na atividade política, é preciso recordar-se de que «independentemente da aparência, cada um é imensamente sagrado e merece o nosso afeto e a nossa dedicação. Por isso, se consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha vida. É maravilhoso ser povo fiel de Deus. E ganhamos plenitude, quando derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e de nomes!» 193 Os grandes objetivos, sonhados nas estratégias, só em parte se alcançam. Mas, sem olhar a isso, quem ama e deixou de entender a política como uma mera busca de poder «está seguro de que não se perde nenhuma das suas obras feitas com amor, não se perde nenhuma das suas preocupações sinceras com os outros, não se perde nenhum ato de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas generosas fadigas, não se perde nenhuma dolorosa paciência. Tudo isto circula pelo mundo como uma força de vida». 194 196. Por outro lado, é grande nobreza ser capaz de desencadear processos cujos frutos serão colhidos por outros, com a esperança colocada na força secreta do bem que se semeia. Ao amor, a boa política une a esperança, a confiança nas reservas de bem que, apesar de tudo, existem no coração do povo. Por isso, «a vida política autêntica, que se funda no direito e num diálogo leal entre os sujeitos, renova-se com a convicção de que 190 RENE VOILLAUME, Frère de tous (Paris 1968), 12-13. 191 FRANCISCO, Vídeo-mensagem ao encontro internacional TED2017 em Vancouver (26 de abril de 2017): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 04/V/2017), 17. 192 IDEM, Catequese na Audiência Geral (18 de fevereiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 19/II/2015), 20. 193 IDEM, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 274: AAS 105 (2013), 1130. 194 Ibid., 279: o. c., 1132. - 75 - cada mulher, cada homem e cada geração encerram em si uma promessa que pode irradiar novas energias relacionais, intelectuais, culturais e espirituais». 195 197. Vista desta maneira, a política é mais nobre do que a aparência, o marketing, as diferentes formas de maquilhagem mediática. Tudo isto semeia apenas divisão, inimizade e um ceticismo desolador incapaz de apelar para um projeto comum. Ao pensar no futuro, alguns dias as perguntas devem ser: «Para quê? Para onde estou realmente apontando?» Passados alguns anos, ao refletir sobre o próprio passado, a pergunta não será: «Quantos me aprovaram, quantos votaram em mim, quantos tiveram uma imagem positiva de mim?» As perguntas, talvez dolorosas, serão: «Quanto amor coloquei no meu trabalho? Em que fiz progredir o povo? Que marcas deixei na vida da sociedade? Que laços reais construí? Que forças positivas desencadeei? Quanta paz social semeei? Que produzi no lugar que me foi confiado?» 195 FRANCISCO, Mensagem para o 52º Dia Mundial da Paz de 2019 (8 de dezembro de 2018), 5: L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 18-25/XII/2018), 9. - 76 - CAPÍTULO VI DIÁLOGO E AMIZADE SOCIAL 198. Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contacto: tudo isto se resume no verbo «dialogar». Para nos encontrar e ajudar mutuamente, precisamos de dialogar. Não é necessário dizer para que serve o diálogo; é suficiente pensar como seria o mundo sem o diálogo paciente de tantas pessoas generosas, que mantiveram unidas famílias e comunidades. O diálogo perseverante e corajoso não faz notícia como as desavenças e os conflitos; e contudo, de forma discreta mas muito mais do que possamos notar, ajuda o mundo a viver melhor. O DIÁLOGO SOCIAL PARA UMA NOVA CULTURA 199. Alguns tentam fugir da realidade, refugiando-se em mundos privados, enquanto outros a enfrentam com violência destrutiva, mas «entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível: o diálogo. O diálogo entre as gerações, o diálogo no povo, porque todos somos povo, a capacidade de dar e receber, permanecendo abertos à verdade. Um país cresce quando dialogam de modo construtivo as suas diversas riquezas culturais: a cultura popular, a cultura universitária, a cultura juvenil, a cultura artística e a cultura tecnológica, a cultura económica e a cultura da família, e a cultura dos meios de comunicação». 196 200. Muitas vezes confunde-se o diálogo com algo muito diferente: uma troca febril de opiniões nas redes sociais, muitas vezes pilotada por uma informação mediática nem sempre fiável. Não passam de monólogos que avançam em paralelo, talvez impondo-se à atenção dos outros pelo seu tom alto e agressivo. Mas os monólogos não empenham a ninguém, a ponto de os seus conteúdos aparecerem, não raro, oportunistas e contraditórios. 196 FRANCISCO, Discurso no encontro com a classe dirigente (Rio de Janeiro – Brasil 27 de julho de 2013): AAS 105 (2013), 683-684. - 77 - 201. A difusão altissonante de factos e reivindicações nos media, na realidade o que faz muitas vezes é obstruir as possibilidades do diálogo, pois permite a cada um manter, intactas e sem variantes, as próprias ideias, interesses e opções, desculpando-se com os erros alheios. Predomina o costume de denegrir rapidamente o adversário, aplicando-lhe atributos humilhantes, em vez de se enfrentarem num diálogo aberto e respeitoso, onde se procure alcançar uma síntese que vá mais além. O pior é que esta linguagem, habitual no contexto mediático duma campanha política, generalizou-se de tal maneira que a usam diariamente todos. Com frequência, o debate é manipulado por determinados interesses detentores de maior poder que procuram desonestamente inclinar a opinião pública a seu favor. E não me refiro apenas ao governo vigente, porque um tal poder manipulador pode ser económico, político, mediático, religioso ou de qualquer outro género. Às vezes, é justificado ou desculpado quando a sua dinâmica corresponde aos próprios interesses económicos ou ideológicos, mas mais cedo ou mais tarde volta-se contra esses mesmos interesses. 202. A falta de diálogo supõe que ninguém, nos diferentes setores, está preocupado com o bem comum, mas com obter as vantagens que o poder lhe proporciona ou, na melhor das hipóteses, com impor o seu próprio modo de pensar. Assim a conversação reduzir-seá a meras negociações para que cada um possa agarrar todo o poder e as maiores vantagens possíveis, sem uma busca conjunta que gere bem comum. Os heróis do futuro serão aqueles que souberem quebrar esta lógica morbosa e, ultrapassando as conveniências pessoais, decidam sustentar respeitosamente uma palavra densa de verdade. Queira Deus que estes heróis se estejam gerando silenciosamente no coração da nossa sociedade. Construir juntos 203. O diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, aceitando como possível que contenha convicções ou interesses legítimos. A partir da própria identidade, o outro tem algo para dar, e é desejável que aprofunde e exponha a sua posição para que o debate público seja ainda mais completo. Sem dúvida, quando uma pessoa ou um grupo é coerente com o que pensa, adere firmemente a valores e convicções e desenvolve um pensamento, isto irá de uma maneira ou outra beneficiar a sociedade; mas só se verifica realmente na medida em que o referido desenvolvimento se realizar em diálogo e na abertura aos outros. Com efeito, «num verdadeiro espírito de diálogo, nutrese a capacidade de entender o sentido daquilo que o outro diz e faz, embora não se possa - 78 - assumi-lo como uma convicção própria. Deste modo torna-se possível ser sincero, sem dissimular o que acreditamos, nem deixar de dialogar, procurar pontos de contacto e sobretudo trabalhar e lutar juntos». 197 O debate público, se verdadeiramente der espaço a todos e não manipular nem ocultar informações, é um estímulo constante que permite alcançar de forma mais adequada a verdade ou, pelo menos, exprimi-la melhor. Impede que os vários setores se instalem, cómodos e autossuficientes, na sua maneira de ver as coisas e nos seus interesses limitados. Pensemos que «as diferenças são criativas, criam tensão e, na resolução duma tensão, está o progresso da humanidade». 198 204. Atualmente há a convicção de que, além dos progressos científicos especializados, é necessária a comunicação interdisciplinar, uma vez que a realidade é uma só, embora possa ser abordada sob distintas perspetivas e com diferentes metodologias. Não se deve ocultar o risco de um progresso científico ser considerado a única abordagem possível para se entender um aspeto da vida, da sociedade e do mundo. Ao contrário, um investigador que avança frutuosamente na sua análise, mas está de igual modo disposto a reconhecer outras dimensões da realidade que investiga, graças ao trabalho doutras ciências e conhecimentos, abre-se para conhecer a realidade de maneira mais íntegra e plena. 205. Neste mundo globalizado, «os mass media podem ajudar a sentir-nos mais próximos uns dos outros; a fazer-nos perceber um renovado sentido de unidade da família humana, que impele à solidariedade e a um compromisso sério para uma vida mais digna. (…) Podem ajudar-nos nisso, especialmente nos nossos dias em que as redes da comunicação humana atingiram progressos sem precedentes. Particularmente a internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos; e isto é uma coisa boa, é um dom de Deus».199 Mas é necessário verificar, continuamente, que as formas atuais de comunicação nos orientem efetivamente para o encontro generoso, a busca sincera da verdade íntegra, o serviço, a aproximação dos últimos e o compromisso de construir o bem comum. Ao mesmo tempo, como indicaram os bispos da Austrália, 197 FRANCISCO, Exort. ap. pós-sinodal Querida Amazonia (2 de fevereiro de 2020), 108. 198 Filme de Wim Wenders O Papa Francisco – Um homem de palavra. A esperança é uma mensagem universal (2018). 199 FRANCISCO, Mensagem para o 48º Dia Mundial das Comunicações Sociais (24 de janeiro de 2014): AAS 106 (2014), 113. - 79 - «não podemos aceitar um mundo digital projetado para explorar as nossas fraquezas e tirar fora o pior das pessoas». 200 A BASE DOS CONSENSOS 206. O relativismo não é a solução. Sob o véu duma presumível tolerância, acaba-se por facilitar que os valores morais sejam interpretados pelos poderosos segundo as conveniências da hora. Se, em última análise, «não há verdades objetivas nem princípios estáveis, fora da satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas, (…) não podemos pensar que os programas políticos ou a força da lei sejam suficientes (…). Quando é a cultura que se corrompe deixando de reconhecer qualquer verdade objetiva ou quaisquer princípios universalmente válidos, as leis só se poderão entender como imposições arbitrárias e obstáculos a evitar». 201 207. É possível prestar atenção à verdade, buscar a verdade que corresponde à nossa realidade mais profunda? Que é a lei sem a convicção, alcançada através dum longo caminho de reflexão e sabedoria, de que cada ser humano é sacro e inviolável? Para que uma sociedade tenha futuro, é preciso ter maturado um vivo respeito pela verdade da dignidade humana, à qual nos submetemos. Então abster-se-á de matar alguém, não apenas para evitar o desprezo social e o peso da lei, mas por convicção. É uma verdade irrenunciável que reconhecemos com a razão e aceitamos com a consciência. Uma sociedade é nobre e respeitável, nomeadamente porque cultiva a busca da verdade e pelo seu apego às verdades fundamentais. 208. Temos de nos exercitar em desmascarar as várias modalidades de manipulação, deformação e ocultamento da verdade nas esferas pública e privada. O que chamamos «verdade» não é só a comunicação de factos operada pelo jornalismo. É, antes de mais nada, a busca dos fundamentos mais sólidos que estão na base das nossas opções e também das nossas leis. Isto implica aceitar que a inteligência humana pode ir além das conveniências do momento atual e captar algumas verdades que não mudam, que eram verdade antes de nós e sempre o serão. Indagando sobre a natureza humana, a razão descobre valores que são universais, porque derivam dela. 200 CONFERÊNCIA DOS BISPOS CATÓLICOS DA AUSTRÁLIA (Departamento para a Justiça Social), Making it real: genuine human encounter in our digital world (novembro de 2019), 5. 201 FRANCISCO, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 123: AAS 107 (2015), 896. - 80 - 209. Caso contrário, não poderia porventura suceder que os direitos humanos fundamentais, hoje considerados invioláveis, acabassem negados pelos poderosos de turno, depois de terem obtido o «consenso» duma população adormecida e amedrontada? Nem seria suficiente um mero consenso entre os vários povos, porque igualmente manipulável. Existem já provas abundantes de todo o bem que somos capazes de realizar, mas ao mesmo tempo devemos reconhecer a capacidade de destruição que existe em nós. Não será, este individualismo indiferente e desalmado em que caímos, resultado também da preguiça de buscar os valores mais altos, que estão para além das necessidades momentâneas? Ao relativismo junta-se o risco de que o poderoso ou o mais hábil consiga impor uma suposta verdade. Pelo contrário, «diante das normas morais que proíbem o mal intrínseco, não existem privilégios ou exceções para ninguém. Ser o dono do mundo ou o último “miserável” sobre a face da terra, não faz diferença alguma: perante as exigências morais, todos somos absolutamente iguais». 202 210. Um fenómeno atual, que nos está a arrastar para uma lógica perversa e vazia, é a assimilação da ética e da política à física. Não existem o bem e o mal em si mesmos, mas apenas um cálculo de vantagens e desvantagens. O deslocamento da razão moral traz como consequência que o direito não se pode referir a uma conceção fundamental de justiça, mas torna-se um espelho das ideias dominantes. Entramos aqui numa degradação: vai-se «nivelando por baixo» mediante um consenso superficial e comprometedor. Assim, em última análise, triunfa a lógica da força. O consenso e a verdade 211. Numa sociedade pluralista, o diálogo é o caminho mais adequado para se chegar a reconhecer aquilo que sempre deve ser afirmado e respeitado e que ultrapassa o consenso ocasional. Falamos de um diálogo que precisa de ser enriquecido e iluminado por razões, por argumentos racionais, por uma variedade de perspetivas, por contribuições de diversos conhecimentos e pontos de vista, e que não exclui a convicção de que é possível chegar a algumas verdades fundamentais que devem e deverão ser sempre defendidas. Aceitar que há alguns valores permanentes, embora nem sempre seja fácil reconhecê-los, confere solidez e estabilidade a uma ética social. Mesmo quando os reconhecemos e assumimos através do diálogo e do consenso, vemos que estes valores basilares estão para além de 202 SÃO JOÃO PAULO II, Carta enc. Veritatis splendor (6 de agosto de 1993), 96: AAS 85 (1993), 1209. - 81 - qualquer consenso, reconhecemo-los como valores transcendentes aos nossos contextos e nunca negociáveis. Poderá crescer a nossa compreensão do seu significado e importância – e, neste sentido, o consenso é uma realidade dinâmica –, mas, em si mesmos, são apreciados como estáveis pelo seu sentido intrínseco. 212. Se algo permanece sempre conveniente para o bom funcionamento da sociedade, não será porque atrás disso há uma verdade perene que a inteligência pode captar? Na própria realidade do ser humano e da sociedade, na sua natureza íntima, há uma série de estruturas basilares que sustentam o seu desenvolvimento e sobrevivência. Daí derivam certas exigências que podem ser descobertas através do diálogo, embora não sejam construídas em sentido estrito pelo consenso. O facto de certas normas serem indispensáveis para a própria vida social é um indício externo de como elas sejam algo intrinsecamente bom. Portanto, não é necessário contrapor a conveniência social, o consenso e a realidade duma verdade objetiva. As três coisas podem unir-se harmoniosamente, quando as pessoas, através do diálogo, têm a coragem de levar a fundo uma questão. 213. Se devemos em qualquer situação respeitar a dignidade dos outros, isto significa que esta não é uma invenção nem uma suposição nossa, mas que existe realmente neles um valor superior às coisas materiais e independente das circunstâncias e exige um tratamento distinto. Que todo o ser humano possui uma dignidade inalienável é uma verdade que corresponde à natureza humana, independentemente de qualquer transformação cultural. Por isso o ser humano possui a mesma dignidade inviolável em todo e qualquer período da história, e ninguém pode sentir-se autorizado, pelas circunstâncias, a negar esta convicção nem a agir em sentido contrário. Assim, a inteligência pode perscrutar a realidade das coisas, através da reflexão, da experiência e do diálogo, para reconhecer nessa realidade que a transcende a base de certas exigências morais universais. 214. Aos agnósticos, este fundamento poder-lhes-á aparecer como suficiente para conferir aos princípios éticos basilares e não negociáveis uma validade universal de tal forma firme e estável que consiga impedir novas catástrofes. Para os crentes, a natureza humana, fonte de princípios éticos, foi criada por Deus, que em última análise confere um fundamento sólido a estes princípios.203 Isto não estabelece um fixismo ético nem abre a 203 Como cristãos, acreditamos também que Deus dá a sua graça para se poder agir como irmãos. - 82 - estrada à imposição dum sistema moral, uma vez que os princípios morais fundamentais e universalmente válidos podem dar lugar a várias normativas práticas. Por isso, fica sempre um espaço para o diálogo. UMA NOVA CULTURA 215. «A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida». 204 Já várias vezes convidei a fazer crescer uma cultura do encontro que supere as dialéticas que colocam um contra o outro. É um estilo de vida que tende a formar aquele poliedro que tem muitas faces, muitos lados, mas todos compõem uma unidade rica de matizes, porque «o todo é superior à parte». 205 O poliedro representa uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças. Na realidade, de todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil, ninguém é supérfluo. Isto implica incluir as periferias. Quem vive nelas tem outro ponto de vista, vê aspetos da realidade que não se descobrem a partir dos centros de poder onde se tomam as decisões mais determinantes. O encontro feito cultura 216. A palavra «cultura» indica algo que penetrou no povo, nas suas convicções mais profundas e no seu estilo de vida. Quando falamos duma «cultura» no povo, trata-se de algo mais que uma ideia ou uma abstração; inclui as aspirações, o entusiasmo e, em última análise, um modo de viver que carateriza aquele grupo humano. Assim, falar de «cultura do encontro» significa que nos apaixona, como povo, querer encontrar-nos, procurar pontos de contacto, lançar pontes, projetar algo que envolva a todos. Isto tornou-se uma aspiração e um estilo de vida. O sujeito desta cultura é o povo, não um setor da sociedade que tenta manter tranquilo o resto com recursos profissionais e mediáticos. 217. A paz social é laboriosa, artesanal. Seria mais fácil conter as liberdades e as diferenças com um pouco de astúcia e algumas compensações; mas esta paz seria superficial e frágil, não o fruto duma cultura do encontro que a sustente. Integrar as realidades diferentes é muito mais difícil e lento, embora seja a garantia duma paz real e 204 VINICIUS DE MORAES, «Samba da Bênção», no disco Um encontro no «Au bon Gourmet» (Rio de Janeiro 02/VIII/1962). 205 FRANCISCO, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 237: AAS 105 (2013), 1116. - 83 - sólida. Isto não se consegue agrupando só os puros, porque «até mesmo as pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a oferecer que não se deve perder». 206 Nem consiste numa paz que surja acalmando as reivindicações sociais ou impedindo-as de criar confusão, pois não é «um consenso de escritório nem uma paz efémera para uma feliz minoria». 207 O que conta é gerar processos de encontro, processos que possam construir um povo capaz de recolher as diferenças. Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo! Ensinemos-lhes a boa batalha do encontro! O prazer de reconhecer o outro 218. Isto implica o hábito de reconhecer, ao outro, o direito de ser ele próprio e de ser diferente. A partir deste reconhecimento feito cultura, torna-se possível a criação dum pacto social. Sem este reconhecimento, surgem maneiras subtis de fazer com que o outro perca todo o seu significado, se torne irrelevante, fazer com que na sociedade não lhe seja reconhecido qualquer valor. Por trás da repulsa de certas formas visíveis de violência, muitas vezes esconde-se outra violência mais dissimulada: a daqueles que desprezam o diferente, sobretudo quando as suas reivindicações prejudicam dalguma maneira os próprios interesses. 219. Quando uma parte da sociedade pretende apropriar-se de tudo aquilo que o mundo oferece, como se os pobres não existissem, virá o momento em que isso terá as suas consequências. Ignorar a existência e os direitos dos outros provoca, mais cedo ou mais tarde, alguma forma de violência, muitas vezes inesperada. Os sonhos de liberdade, igualdade e fraternidade podem permanecer no nível de meras formalidades, porque não são efetivamente para todos. Sendo assim, não se trata apenas de procurar um encontro entre aqueles que detêm várias formas de poder económico, político ou académico; um efetivo encontro social coloca em verdadeiro diálogo as grandes formas culturais que representam a maioria da população. Muitas vezes, as boas propostas não são assumidas pelos setores mais pobres, porque se apresentam com uma roupagem cultural que não é a deles e com a qual não podem sentir-se identificados. Por conseguinte, um pacto social realista e inclusivo deve ser também um «pacto cultural», que respeite e assuma as diversas visões do mundo, as culturas e os estilos de vida que coexistem na sociedade. 206 Ibid., 236: o. c., 1115. 207 Ibid., 218: o. c., 1110. - 84 - 220. Por exemplo, os povos nativos não são contra o progresso, embora tenham uma ideia diferente de progresso, frequentemente mais humanista que a da cultura moderna dos povos desenvolvidos. Não é uma cultura orientada para benefício daqueles que detêm o poder, daqueles que precisam de criar uma espécie de paraíso sobre a terra. A intolerância e o desprezo perante as culturas populares indígenas são uma verdadeira forma de violência, própria dos especialistas em ética sem bondade que vivem julgando os outros. Mas nenhuma mudança autêntica, profunda e estável é possível, se não se realizar a partir das várias culturas, principalmente dos pobres. Um pacto cultural pressupõe que se renuncie a compreender de maneira monolítica a identidade dum lugar, e exige que se respeite a diversidade, oferecendo-lhe caminhos de promoção e integração social. 221. Este pacto implica também aceitar a possibilidade de ceder algo para o bem comum. Ninguém será capaz de possuir toda a verdade nem satisfazer a totalidade dos seus desejos, porque uma tal pretensão levaria a querer destruir o outro, negando-lhe os seus direitos. A busca duma falsa tolerância deve dar lugar ao realismo dialogante por parte de quem pensa que deve ser fiel aos seus princípios, mas reconhecendo que o outro também tem o direito de procurar ser fiel aos dele. Tal é o autêntico reconhecimento do outro, que só o amor torna possível e que significa colocar-se no lugar do outro para descobrir o que há de autêntico ou pelo menos de compreensível no meio das suas motivações e interesses. RECUPERAR A AMABILIDADE 222. O individualismo consumista provoca muitos abusos. Os outros tornam-se meros obstáculos para a agradável tranquilidade própria e, assim, acaba-se por tratá-los como incómodos; e a agressividade aumenta. Isto acentua-se e atinge níveis exasperantes em períodos de crise, situações catastróficas, momentos difíceis, quando aflora o espírito do «salve-se quem puder». Contudo, ainda é possível optar pelo cultivo da amabilidade; há pessoas que o conseguem, tornando-se estrelas no meio da escuridão. 223. São Paulo designa um fruto do Espírito Santo com a palavra grega chrestotes (Gal 5, 22), que expressa um estado de ânimo não áspero, rude, duro, mas benigno, suave, que sustenta e conforta. A pessoa que possui esta qualidade ajuda os outros, para que a sua existência seja mais suportável, sobretudo quando sobrecarregados com o peso dos seus problemas, urgências e angústias. É um modo de tratar os outros, que se manifesta de - 85 - diferentes formas: amabilidade no trato, cuidado para não magoar com as palavras ou os gestos, tentativa de aliviar o peso dos outros. Supõe «dizer palavras de incentivo, que reconfortam, consolam, fortalecem, estimulam», em vez de «palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam». 208 224. A amabilidade é uma libertação da crueldade que às vezes penetra nas relações humanas, da ansiedade que não nos deixa pensar nos outros, da urgência distraída que ignora que os outros também têm direito de ser felizes. Hoje raramente se encontram tempo e energias disponíveis para se demorar a tratar bem os outros, para dizer «com licença», «desculpe», «obrigado». Contudo de vez em quando verifica-se o milagre duma pessoa amável, que deixa de lado as suas preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença. Este esforço, vivido dia a dia, é capaz de criar aquela convivência sadia que vence as incompreensões e evita os conflitos. O exercício da amabilidade não é um detalhe insignificante nem uma atitude superficial ou burguesa. Dado que pressupõe estima e respeito, quando se torna cultura numa sociedade, transforma profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o modo de debater e confrontar as ideias. Facilita a busca de consensos e abre caminhos onde a exasperação destrói todas as pontes. 208 FRANCISCO, Exort. ap. pós-sinodal Amoris laetitia (19 de março de 2016), 100: AAS 108 (2016), 351. - 86 - CAPÍTULO VII PERCURSOS DUM NOVO ENCONTRO 225. Em muitas partes do mundo, fazem falta percursos de paz que levem a cicatrizar as feridas, há necessidade de artesãos de paz prontos a gerar, com inventiva e ousadia, processos de cura e de um novo encontro. RECOMEÇAR A PARTIR DA VERDADE 226. Novo encontro não significa voltar ao período anterior aos conflitos. Com o tempo, todos mudamos. A tribulação e os confrontos transformaram-nos. Além disso, já não há espaço para diplomacias vazias, dissimulações, discursos com duplo sentido, ocultamentos, bons modos que escondem a realidade. Os que se defrontaram duramente falam a partir da verdade, nua e crua. Precisam de aprender a cultivar uma memória penitencial, capaz de assumir o passado para libertar o futuro das próprias insatisfações, confusões ou projeções. Só da verdade histórica dos factos poderá nascer o esforço perseverante e duradouro para se compreenderem mutuamente e tentar uma nova síntese para o bem de todos. De facto, «o processo de paz é um empenho que se prolonga no tempo. É um trabalho paciente de busca da verdade e da justiça, que honra a memória das vítimas e abre, passo a passo, para uma esperança comum, mais forte que a vingança». 209 Como disseram os bispos do Congo, a propósito dum conflito que não cessa de reacenderse, «os acordos de paz no papel, nunca serão suficientes; será preciso ir mais longe, integrando a exigência de verdade sobre as origens desta crise recorrente. O povo tem direito de saber o que aconteceu».210 227. Com efeito, «a verdade é uma companheira inseparável da justiça e da misericórdia. Se, por um lado, são essenciais – as três todas juntas – para construir a paz, por outro, cada uma delas impede que as restantes sejam adulteradas (...). De facto, a verdade não deve 209 FRANCISCO, Mensagem para o 53º Dia Mundial da Paz de 2020 (8 de dezembro de 2019), 2: L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 17-27/XII/2019), 9. 210 CONFERENCIA EPISCOPAL DO CONGO, Message au Peuple de Dieu et aux femmes et aux hommes de bonne volonté (09/V/2018). - 87 - levar à vingança, mas antes à reconciliação e ao perdão. A verdade é contar às famílias dilaceradas pela dor o que aconteceu aos seus parentes desaparecidos. A verdade é confessar o que aconteceu aos menores recrutados pelos agentes de violência. A verdade é reconhecer o sofrimento das mulheres vítimas de violência e de abusos. (...) Cada ato de violência cometido contra um ser humano é uma ferida na carne da humanidade; cada morte violenta “diminui-nos” como pessoas. (...) A violência gera mais violência, o ódio gera mais ódio, e a morte mais morte. Temos de quebrar esta corrente que aparece como inelutável». 211 A ARQUITETURA E O ARTESANATO DA PAZ 228. O percurso para a paz não implica homogeneizar a sociedade, mas permite-nos trabalhar juntos. Pode unir muitos nas pesquisas comuns, onde todos ganham. Perante um certo objetivo comum, poder-se-á contribuir com diferentes propostas técnicas, distintas experiências, e trabalhar em prol do bem comum. É preciso procurar identificar bem os problemas que atravessa uma sociedade, para aceitar que existem diferentes maneiras de encarar as dificuldades e resolvê-las. O caminho para uma melhor convivência implica sempre reconhecer a possibilidade de que o outro contribua com uma perspetiva legítima, pelo menos em parte, algo que possa ser recuperado, mesmo que se tenha equivocado ou tenha agido mal. Porque «o outro nunca há de ser circunscrito àquilo que pôde ter dito ou feito, mas deve ser considerado pela promessa que traz em si mesmo», 212 uma promessa que deixa sempre um lampejo de esperança. 229. Como ensinaram os bispos da África do Sul, a verdadeira reconciliação alcança-se de maneira proativa, «formando uma nova sociedade baseada no serviço aos outros, e não no desejo de dominar; uma sociedade baseada na partilha do que se possui com os outros, e não na luta egoísta de cada um pela maior riqueza possível; uma sociedade na qual o valor de estar juntos como seres humanos é, em última análise, mais importante do que qualquer grupo menor, seja ele a família, a nação, a etnia ou a cultura». 213 E os bispos da 211 FRANCISCO, Alocução na Liturgia de Reconciliação (Villavicencio – Colômbia 8 de setembro de 2017): AAS 109 (2017), 1063-1064 e 1066. 212 IDEM, Mensagem para o 53º Dia Mundial da Paz de 2020 (8 de dezembro de 2019), 3: L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 17-27/XII/2019), 9. 213 CONFERÊNCIA DOS BISPOS DA ÁFRICA DO SUL, Pastoral letter on christian hope in the current crisis (maio de 1986). - 88 - Coreia do Sul destacaram que uma verdadeira paz «só se pode alcançar quando lutamos pela justiça através do diálogo, buscando a reconciliação e o desenvolvimento mútuo». 214 230. O árduo esforço por superar o que nos divide, sem perder a identidade de cada um, pressupõe que em todos permaneça vivo um sentimento basilar de pertença. Porque «a nossa sociedade ganha, quando cada pessoa, cada grupo social se sente verdadeiramente de casa. Numa família, os pais, os avós, os filhos são de casa; ninguém fica excluído. Se alguém tem uma dificuldade, mesmo grave, ainda que seja por culpa dele, os outros correm em sua ajuda, apoiam-no; a sua dor é de todos. (…) Nas famílias, todos contribuem para o projeto comum, todos trabalham para o bem comum, mas sem anular o indivíduo; pelo contrário, sustentam-no, promovem-no. Podem brigar entre si, mas há algo que não se move: este laço familiar. As brigas de família tornam-se reconciliações mais tarde. As alegrias e as penas de cada um são assumidas por todos. Isto sim é ser família! Oh, se pudéssemos conseguir ver o adversário político ou o vizinho de casa com os mesmos olhos com que vemos os filhos, esposas, maridos, pais ou mães, como seria bom! Amamos a nossa sociedade, ou continua a ser algo distante, algo anónimo, que não nos corresponde, não nos insere, não nos compromete?» 215 231. Muitas vezes há grande necessidade de negociar e, assim, desenvolver percursos concretos para a paz. Mas os processos efetivos duma paz duradoura são, antes de mais nada, transformações artesanais realizadas pelos povos, onde cada pessoa pode ser um fermento eficaz com o seu estilo de vida diária. As grandes transformações não são construídas à escrivaninha ou no escritório. Por isso, «cada qual desempenha um papel fundamental, num único projeto criador, para escrever uma nova página da história, uma página cheia de esperança, cheia de paz, cheia de reconciliação». 216 Existe uma «arquitetura» da paz, na qual intervêm as várias instituições da sociedade, cada uma dentro de sua competência, mas há também um «artesanato» da paz que nos envolve a todos. A partir de distintos processos de paz que se desenvolvem em vários lugares do mundo, «aprendemos que estes caminhos de pacificação, de primazia da razão sobre a vingança, de delicada harmonia entre a política e o direito, não podem prescindir das pessoas 214 CONFERÊNCIA DOS BISPOS CATÓLICOS DA COREIA, Appeal of the Catholic Church in Korea for Peace on the Korean Peninsula (15 de agosto de 2017). 215 FRANCISCO, Discurso no encontro com a sociedade civil (Quito – Equador 7 de julho de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 09/VII/2015), 10. 216 IDEM, Discurso no encontro inter-religioso com os jovens (Maputo – Moçambique 5 de setembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 10/IX/2019), 4. - 89 - implicadas nos processos. Não basta o desenho de quadros normativos e acordos institucionais entre grupos políticos ou económicos de boa vontade (...). Além disso, é sempre enriquecedor incorporar nos nossos processos de paz a experiência de setores que, em muitas ocasiões, foram deixados de lado, para que sejam precisamente as comunidades a revestir os processos de memória coletiva». 217 232. Nunca está terminada a construção da paz social num país, mas é «uma tarefa que não dá tréguas e exige o compromisso de todos. Uma obra que nos pede para não esmorecermos no esforço por construir a unidade da nação e – apesar dos obstáculos, das diferenças e das diversas abordagens sobre o modo como conseguir a convivência pacífica – persistirmos na labuta por favorecer a cultura do encontro que exige que, no centro de toda a ação política, social e económica, se coloque a pessoa humana, a sua sublime dignidade e o respeito pelo bem comum. Que este esforço nos faça esquivar de toda a tentação de vingança e busca de interesses apenas particulares e a curto prazo». 218 As manifestações públicas violentas, de um lado ou do outro, não ajudam a encontrar vias de saída, sobretudo porque, quando se incentivam – como bem assinalaram os bispos da Colômbia – «as mobilizações dos cidadãos, nem sempre aparecem claras as origens e objetivos das mesmas; não faltam formas de manipulação política e apropriações a favor de interesses particulares». 219 Sobretudo com os últimos 233. A promoção da amizade social implica não só a aproximação entre grupos sociais distanciados a partir dum período conflituoso da história, mas também a busca dum renovado encontro com os setores mais pobres e vulneráveis. A paz «não é apenas ausência de guerra, mas o empenho incansável – especialmente daqueles que ocupamos um cargo de maior responsabilidade – de reconhecer, garantir e reconstruir concretamente 217 FRANCISCO, Homilia «dignidade da pessoa e direitos humanos» (Cartagena das Índias – Colômbia 10 de setembro de 2017): AAS 109 (2017), 1086. 218 IDEM, Discurso no Encontro com as autoridades, o corpo diplomático e representantes da sociedade civil (Bogotá – Colômbia 7 de setembro de 2017): AAS 109 (2017), 1029. 219 CONFERÊNCIA EPISCOPAL DA COLÔMBIA, Por el bien de Colombia: diálogo, reconciliación y desarrollo integral (26 de novembro de 2019), 4. - 90 - a dignidade, tantas vezes esquecida ou ignorada, de irmãos nossos, para que possam sentir-se os principais protagonistas do destino da própria nação». 220 234. Muitas vezes, os últimos da sociedade foram ofendidos com generalizações injustas. Se às vezes os mais pobres e os descartados reagem com atitudes que parecem antissociais, é importante compreender que, em muitos casos, tais reações têm a ver com uma história de desprezo e falta de inclusão social. Como ensinam os bispos latinoamericanos, «só a proximidade que nos faz amigos nos permite apreciar profundamente os valores dos pobres de hoje, seus legítimos desejos e seu modo próprio de viver a fé. A opção pelos pobres deve conduzir-nos à amizade com os pobres». 221 235. Aqueles que pretendem pacificar uma sociedade não devem esquecer que a desigualdade e a falta de desenvolvimento humano integral impedem que se gere a paz. Na verdade, «sem igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há de provocar a explosão. Quando a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade». 222 Se se trata de recomeçar, sempre há de ser a partir dos últimos. O VALOR E O SIGNIFICADO DO PERDÃO 236. Alguns preferem não falar de reconciliação, porque pensam que o conflito, a violência e as ruturas fazem parte do funcionamento normal duma sociedade. De facto, em qualquer grupo humano, há lutas de poder mais ou menos subtis entre vários setores. Outros defendem que dar lugar ao perdão equivale a ceder o espaço próprio para que outros dominem a situação. Por isso, consideram que é melhor manter um jogo de poder que permita assegurar um equilíbrio de forças entre os diferentes grupos. Outros consideram que a reconciliação seja empreendimento de fracos, que não são capazes dum 220 FRANCISCO, Discurso no encontro com as autoridades, o corpo diplomático e alguns representantes da sociedade civil (Maputo – Moçambique 5 de setembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 10/IX/2019), 3. 221 V CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE, Documento de Aparecida (29 de junho de 2007), 398. 222 FRANCISCO, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 59: AAS 105 (2013), 1044. - 91 - diálogo em profundidade e por isso optam por escapar dos problemas escondendo as injustiças. Incapazes de enfrentar os problemas, preferem uma paz aparente. O conflito inevitável 237. O perdão e a reconciliação são temas de grande relevo no cristianismo e, com várias modalidades, noutras religiões. O risco reside em não entender adequadamente as convicções dos crentes e apresentá-las de tal modo que acabem por alimentar o fatalismo, a inércia ou a injustiça, e, por outro lado, a intolerância e a violência. 238. Jesus Cristo nunca convidou a fomentar a violência ou a intolerância. Ele próprio condenava abertamente o uso da força para se impor aos outros: «Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós» (Mt 20, 25-26). Por outro lado, o Evangelho pede para perdoar «setenta vezes sete» (Mt 18, 22), dando o exemplo do servo sem compaixão, que foi perdoado mas, por sua vez, mostrou-se incapaz de perdoar aos outros (cf. Mt 18, 23- 35). 239. Se lermos outros textos do Novo Testamento, podemos notar que realmente as comunidades primitivas, imersas num mundo pagão repleto de corrupção e aberrações, viviam animadas por um sentido de paciência, tolerância, compreensão. A este respeito, são muito claros alguns textos: convida-se a corrigir os adversários «com suavidade» (2 Tim 2, 25); ou exorta-se a «que não digam mal de ninguém, nem sejam conflituosos, mas sejam afáveis, mostrando sempre amabilidade para com todos os homens. Pois também nós éramos outrora insensatos» (Tit 3, 2-3). O livro dos Atos dos Apóstolos mostra que os discípulos, perseguidos por algumas autoridades, «tinham a simpatia de todo o povo» (2, 47; cf. 4, 21.33; 5, 13). 240. Entretanto, ao refletirmos sobre o perdão, a paz e a concórdia social, deparamo-nos com um texto de Jesus Cristo que nos surpreende: «Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada. Porque vim separar o filho do seu pai, a filha da sua mãe e a nora da sua sogra; de tal modo que os inimigos do homem serão os seus familiares» (Mt 10, 34-36). É importante situá-lo no contexto do capítulo onde está inserido. Aqui vê-se claramente que o tema em questão é o da fidelidade à própria opção, sem ter vergonha, ainda que isso traga contrariedades e mesmo que os entes queridos se - 92 - oponham a tal opção. Portanto, não convida a procurar conflitos, mas simplesmente a suportar o conflito inevitável, para que o respeito humano não leve a faltar à fidelidade em nome duma suposta paz familiar ou social. São João Paulo II disse que a Igreja «não pretende condenar toda e qualquer forma de conflitualidade social. A Igreja sabe bem que, ao longo da história, os conflitos de interesse entre diversos grupos sociais surgem inevitavelmente e que, perante eles, o cristão deve muitas vezes tomar posição decidida e coerentemente». 223 As lutas legítimas e o perdão 241. Não se trata de propor um perdão renunciando aos próprios direitos perante um poderoso corrupto, um criminoso ou alguém que degrada a nossa dignidade. Somos chamados a amar a todos, sem exceção, mas amar um opressor não significa consentir que continue a ser tal; nem levá-lo a pensar que é aceitável o que faz. Pelo contrário, amá-lo corretamente é procurar, de várias maneiras, que deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano. Perdoar não significa permitir que continuem a espezinhar a própria dignidade e a do outro, ou deixar que um criminoso continue a fazer mal. Quem sofre injustiça tem de defender vigorosamente os seus direitos e os da sua família, precisamente porque deve guardar a dignidade que lhes foi dada, uma dignidade que Deus ama. Se um delinquente cometeu um delito contra mim ou contra um ente querido, ninguém me proíbe de exigir justiça e me acautelar para que essa pessoa – ou qualquer outra – não volte a lesar-me nem cause a outros o mesmo dano. Compete-me fazê-lo, e o perdão não só não anula esta necessidade, mas reclama-a. 242. O importante é não o fazer para alimentar um ódio que faz mal à alma da pessoa e à alma do nosso povo, ou por uma necessidade morbosa desencadeando uma série de vinganças. Ninguém alcança a paz interior nem se reconcilia com a vida dessa maneira. A verdade é que «nenhuma família, nenhum grupo de vizinhos ou uma etnia e menos ainda um país tem futuro, se o motor que os une, congrega e cobre as diferenças é a vingança e o ódio. Não podemos pôr-nos de acordo e unir-nos para nos vingarmos, para fazermos àquele que foi violento o mesmo que ele nos fez, para planearmos ocasiões de 223 Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 14: AAS 83 (1991), 810. - 93 - retaliação sob formatos aparentemente legais». 224 Assim não se ganha nada e, a longo prazo, perde-se tudo. 243. Sem dúvida, «não é tarefa fácil superar a amarga herança de injustiças, hostilidades e desconfiança deixada pelo conflito. Só se pode conseguir, superando o mal com o bem (cf. Rm 12, 21) e cultivando aquelas virtudes que promovem a reconciliação, a solidariedade e a paz». 225 Deste modo a bondade, «a quem a faz crescer dentro de si, dá uma consciência tranquila, uma alegria profunda, mesmo no meio de dificuldades e incompreensões. E até perante as ofensas sofridas, a bondade não é fraqueza mas verdadeira força, capaz de renunciar à vingança». 226 É necessário reconhecer na própria vida que «inclusive aquele juízo duro que tenho no coração contra o meu irmão ou a minha irmã, a ferida não curada, aquele mal não perdoado, o rancor que só me faz mal, é uma parte de guerra que tenho dentro, é um fogo no coração que deve ser apagado a fim de não irromper num incêndio». 227 A verdadeira superação 244. Quando os conflitos não se resolvem, mas se escondem ou são enterrados no passado, há silêncios que podem significar tornar-se cúmplice de graves erros e pecados. A verdadeira reconciliação não escapa do conflito, mas alcança-se dentro do conflito, superando-o através do diálogo e de negociações transparentes, sinceras e pacientes. A luta entre diferentes setores, «quando livre de inimizades e ódio mútuo, transforma-se pouco a pouco numa concorrência honesta, fundada no amor da justiça». 228 245. Várias vezes propus «um princípio que é indispensável para construir a amizade social: a unidade é superior ao conflito. (...) Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que preserva em si as preciosas 224 FRANCISCO, Homilia na Missa pelo progresso dos povos (Maputo – Moçambique 6 de setembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 10/IX/2019), 12. 225 IDEM, Discurso na cerimónia de chegada (Colombo – Sri Lanka 13 de janeiro de 2015): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 15/I/2015), 3. 226 IDEM, Discurso no Centro de Assistência «Betânia» (Tirana – Albânia 21 de setembro de 2014): Insegnamenti II/2 (2014), 288; L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 25/IX/2014), 13. 227 IDEM, Vídeo-mensagem ao encontro internacional TED2017 em Vancouver (26 de abril de 2017): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 04/V/2017), 16. 228 PIO XI, Carta enc. Quadragesimo anno (15 de maio de 1931), 114: AAS 23 (1931), 213. - 94 - potencialidades das polaridades em contraste». 229 Sabemos bem que, «todas as vezes que aprendemos, como pessoas e comunidades, a olhar para mais alto do que nós mesmos e os nossos interesses particulares, a compreensão e o compromisso recíprocos transformam-se em solidariedade; (…) numa área onde os conflitos, as tensões e mesmo aqueles a quem seria possível considerar como contrapostos no passado, podem alcançar uma unidade multiforme que gera nova vida». 230 A MEMÓRIA 246. De quem sofreu muito de maneira injusta e cruel, não se deve exigir uma espécie de «perdão social». A reconciliação é um facto pessoal, e ninguém pode impô-la ao conjunto duma sociedade, embora a deva promover. Na esfera estritamente pessoal, com uma decisão livre e generosa, alguém pode renunciar a exigir um castigo (cf. Mt 5, 44- 46), mesmo que a sociedade e a sua justiça o busquem legitimamente. Mas não é possível decretar uma «reconciliação geral», pretendendo encerrar por decreto as feridas ou cobrir as injustiças com um manto de esquecimento. Quem se pode arrogar o direito de perdoar em nome dos outros? É comovente ver a capacidade de perdão dalgumas pessoas que souberam ultrapassar o dano sofrido, mas também é humano compreender aqueles que não o podem fazer. Em todo o caso, o que nunca se deve propor é o esquecimento. 247. A Shoah não deve ser esquecida. É o «símbolo dos extremos aonde pode chegar a malvadez do homem, quando, atiçado por falsas ideologias, esquece a dignidade fundamental de cada pessoa, a qual merece respeito absoluto seja qual for o povo a que pertença e a religião que professe». 231 Ao recordá-la, não posso deixar de repetir esta oração: «Lembrai-Vos de nós na vossa misericórdia. Dai-nos a graça de nos envergonharmos daquilo que, como homens, fomos capazes de fazer, de nos envergonharmos desta máxima idolatria, de termos desprezado e destruído a nossa carne, aquela que Vós formastes da lama, aquela que vivificastes com o vosso sopro de vida. Nunca mais, Senhor, nunca mais!» 232 229 Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 228: AAS 105 (2013), 1113. 230 FRANCISCO, Discurso no encontro com as autoridades, a sociedade civil e o corpo diplomático (Riga – Letónia 24 de setembro de 2018): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 27/IX/2018), 10. 231 IDEM, Discurso na Cerimónia de Boas-Vindas (Tel Aviv – Israel 25 de maio de 2014): Insegnamenti II/1 (2014), 604; L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 31/V/2014), 7-8. 232 IDEM, Invocação na Visita ao Memorial de Yad Vashem (26 de maio de 2014): AAS 106 (2014), 228. - 95 - 248. Não se devem esquecer os bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui. Uma vez mais, «aqui faço memória de todas as vítimas e inclino-me perante a força e a dignidade das pessoas que, tendo sobrevivido àqueles primeiros momentos, suportaram nos seus corpos durante muitos anos os sofrimentos mais agudos e, nas suas mentes, os germes da morte que continuaram a consumir a sua energia vital. (…) Não podemos permitir que a atual e as novas gerações percam a memória do que aconteceu, aquela memória que é garantia e estímulo para construir um futuro mais justo e fraterno». 233 Também não devemos esquecer as perseguições, o comércio dos escravos e os massacres étnicos que se verificaram e verificam em vários países, e tantos outros factos históricos que nos fazem envergonhar de sermos humanos. Devem ser recordados sempre, repetidamente, sem nos cansarmos nem anestesiarmos. 249. Hoje é fácil cair na tentação de voltar página, dizendo que já passou muito tempo e é preciso olhar para diante. Isso não, por amor de Deus! Sem memória, nunca se avança; não se evolui sem uma memória íntegra e luminosa. Precisamos de manter «viva a chama da consciência coletiva, testemunhando às sucessivas gerações o horror daquilo que aconteceu», que assim «aviva e preserva a memória das vítimas, para que a consciência humana se torne cada vez mais forte contra toda a vontade de domínio e destruição». 234 Precisam disso as próprias vítimas – indivíduos, grupos sociais ou nações – para não cederem à lógica que leva a justificar a represália e qualquer violência em nome do mal imenso que sofreram. Por isso, não me refiro só à memória dos horrores, mas também à recordação daqueles que, no meio dum contexto envenenado e corrupto, foram capazes de recuperar a dignidade e, com pequenos ou grandes gestos, optaram pela solidariedade, o perdão, a fraternidade. É muito salutar fazer memória do bem. Perdão sem esquecimentos 250. O perdão não implica esquecimento. Antes, mesmo que haja algo que de forma alguma pode ser negado, relativizado ou dissimulado, todavia podemos perdoar. Mesmo que haja algo que jamais deve ser tolerado, justificado ou desculpado, todavia podemos perdoar. Mesmo quando houver algo que por nenhum motivo devemos permitir-nos 233 Discurso no Memorial da Paz (Hiroxima – Japão 24 de novembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 03/XII/2019), 12. 234 FRANCISCO, Mensagem para o 53º Dia Mundial da Paz de 2020 (8 de dezembro de 2019), 2: L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 17-24/XII/2019), 8. - 96 - esquecer, todavia podemos perdoar. O perdão livre e sincero é uma grandeza que reflete a imensidão do perdão divino. Se o perdão é gratuito, então pode-se perdoar até a quem resiste ao arrependimento e é incapaz de pedir perdão. 251. Aqueles que perdoam de verdade não esquecem, mas renunciam a deixar-se dominar pela mesma força destruidora que os lesou. Quebram o círculo vicioso, frenam o avanço das forças da destruição. Decidem não continuar a injetar na sociedade a energia da vingança que, mais cedo ou mais tarde, acaba por cair novamente sobre eles próprios. Com efeito, a vingança nunca sacia verdadeiramente a insatisfação das vítimas. Há crimes tão horrendos e cruéis que, fazer sofrer quem os cometeu, não serve para sentir que se reparou o dano; não bastaria sequer matar o criminoso, nem se poderiam encontrar torturas comparáveis àquilo que pode ter sofrido a vítima. A vingança não resolve nada. 252. Também não estamos a falar de impunidade. Mas a justiça procura-se de modo adequado só por amor à própria justiça, por respeito das vítimas, para evitar novos crimes e visando preservar o bem comum, não como a suposta descarga do próprio rancor. O perdão é precisamente o que permite buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança nem na injustiça do esquecimento. 253. Se houve injustiças de parte a parte, é preciso reconhecer claramente a possibilidade de não terem tido a mesma gravidade ou de não serem comparáveis. A violência exercida a partir das estruturas e do poder do Estado não está ao mesmo nível que a violência de grupos particulares. Em todo o caso, não se pode pretender que sejam recordados apenas os sofrimentos injustos duma das partes. Como ensinaram os bispos da Croácia, «devemos o mesmo respeito a toda a vítima inocente. Aqui não pode haver diferenças étnicas, confessionais, nacionais ou políticas». 235 254. Peço a Deus que «prepare os nossos corações para o encontro com os irmãos independentemente das diferenças de ideias, língua, cultura, religião; que unja todo o nosso ser com o óleo da sua misericórdia que cura as feridas dos erros, das 235 CONFERÊNCIA DOS BISPOS DA CROÁCIA, Letter on the Fiftieth Anniversary of the End of the Second World War (1 de maio de 1995). - 97 - incompreensões, das controvérsias; [peço] a graça que nos envie, com humildade e mansidão, pelas sendas desafiadoras mas fecundas da busca da paz». 236 A GUERRA E A PENA DE MORTE 255. Há duas situações extremas que podem chegar a apresentar-se como soluções em circunstâncias particularmente dramáticas, sem se dar conta que são respostas falsas, não resolvem os problemas que pretendem superar e, em última análise, nada mais fazem que acrescentar novos fatores de destruição no tecido da sociedade nacional e mundial. Tratase da guerra e da pena de morte. A injustiça da guerra 256. «No coração dos que maquinam o mal, há falsidade, mas aqueles que têm conselhos de paz, viverão na alegria» (Prov 12, 20). No entanto, há quem busque soluções na guerra, que frequentemente «se nutre com a perversão das relações, com as ambições hegemónicas, os abusos de poder, com o medo do outro e a diferença vista como obstáculo». 237 A guerra não é um fantasma do passado, mas tornou-se uma ameaça constante. O mundo está a encontrar cada vez mais dificuldade no lento caminho da paz que empreendera e começava a dar alguns frutos. 257. Dado que se estão a criar novamente as condições para a proliferação de guerras, lembro que «a guerra é a negação de todos os direitos e uma agressão dramática ao meio ambiente. Se se quiser um desenvolvimento humano integral autêntico para todos, é preciso continuar incansavelmente no esforço de evitar a guerra entre as nações e os povos. Para isso, é preciso garantir o domínio incontrastado do direito e o recurso incansável às negociações, aos mediadores e à arbitragem, como é proposto pela Carta das Nações Unidas, verdadeira norma jurídica fundamental». 238 Quero destacar que os 75 anos de existência das Nações Unidas e a experiência dos primeiros 20 anos deste milénio mostram que a plena aplicação das normas internacionais é realmente eficaz e que a sua 236 FRANCISCO, Homilia na Santa Missa (Amã – Jordânia 24 de maio de 2014): Insegnamenti II/1 (2014), 593; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 31/V/2014), 3. 237 IDEM, Mensagem para o 53º Dia Mundial da Paz de 2020 (8 de dezembro de 2019), 1: L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 17-24/XII/2019), 8. 238 IDEM, Discurso à Organização das Nações Unidas (Nova Iorque – Estados Unidos d’América 25 de setembro de 2015): AAS 107 (2015), 1041-1042. - 98 - inobservância é nociva. A Carta das Nações Unidas, respeitada e aplicada com transparência e sinceridade, é um ponto de referência obrigatório de justiça e um veículo de paz. Mas isto pressupõe não disfarçar intenções ilícitas nem colocar os interesses particulares de um país ou grupo acima do bem comum mundial. Se a norma é considerada um instrumento que se usa quando resulta favorável e se contorna quando não o é, desencadeiam-se forças incontroláveis que causam grande dano às sociedades, aos mais frágeis, à fraternidade, ao meio ambiente e aos bens culturais, com perdas irrecuperáveis para a comunidade global. 258. Deste modo facilmente se opta pela guerra valendo-se de todo o tipo de desculpas aparentemente humanitárias, defensivas ou preventivas, recorrendo-se mesmo à manipulação da informação. De facto, nas últimas décadas, todas as guerras pretenderam ter uma «justificação». O Catecismo da Igreja Católica fala da possibilidade duma legítima defesa por meio da força militar, o que supõe demonstrar a existência de algumas «condições rigorosas de legitimidade moral». 239 Mas cai-se facilmente numa interpretação demasiado larga deste possível direito. Assim, pretende-se indevidamente justificar inclusive ataques «preventivos» ou ações bélicas que dificilmente não acarretem «males e desordens mais graves do que o mal a eliminar». 240 A questão é que, a partir do desenvolvimento das armas nucleares, químicas e biológicas e das enormes e crescentes possibilidades que oferecem as novas tecnologias, conferiu-se à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge muitos civis inocentes. É verdade que «nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem».241 Assim, já não podemos pensar na guerra como solução, porque provavelmente os riscos sempre serão superiores à hipotética utilidade que se lhe atribua. Perante esta realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar duma possível «guerra justa». Nunca mais a guerra!242 259. É importante acrescentar que, com o desenvolvimento da globalização, aquilo que pode aparecer como uma solução imediata ou prática para uma região da terra, desencadeia uma corrente de fatores violentos, muitas vezes subterrâneos, que acabam 239 Catecismo da Igreja Católica, 2039. 240 Ibidem. 241 FRANCISCO, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 104: AAS 107 (2015), 888. 242 Mesmo Santo Agostinho, que elaborou uma ideia da «guerra justa» que hoje já não defendemos, disse que «matar a guerra com a palavra e alcançar e conseguir a paz com a paz e não com a guerra, é maior glória do que a dar aos homens com a espada» (Epistula 229, 2: PL 33, 1020). - 99 - por atingir todo o planeta e abrir caminho para novas e piores guerras futuras. No nosso mundo, já não existem só «pedaços» de guerra num país ou noutro, mas vive-se uma «guerra mundial aos pedaços», porque os destinos dos países estão intensamente ligados entre si no cenário mundial. 260. Como dizia São João XXIII, «não é mais possível pensar que nesta nossa era atómica a guerra seja um meio apto para ressarcir direitos violados». 243 Afirmava-o num período de forte tensão internacional, manifestando assim o grande anseio de paz que se difundia nos tempos da guerra fria. Reforçou a convicção de que as razões da paz são mais fortes do que todo o cálculo de interesses particulares e toda a confiança posta no uso das armas. Mas, por falta duma visão de futuro e duma consciência compartilhada sobre o nosso destino comum, não se exploraram adequadamente as oportunidades que oferecia o fim da guerra fria. Em vez disso, cedeu-se à busca de interesses particulares, sem se preocupar com o bem comum universal. Assim irrompeu novamente o fantasma enganador da guerra. 261. Toda a guerra deixa o mundo pior do que o encontrou. A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças do mal. Não fiquemos em discussões teóricas, tomemos contacto com as feridas, toquemos a carne de quem paga os danos. Voltemos o olhar para tantos civis massacrados como «danos colaterais». Interroguemos as vítimas. Prestemos atenção aos prófugos, àqueles que sofreram as radiações atómicas ou os ataques químicos, às mulheres que perderam os filhos, às crianças mutiladas ou privadas da sua infância. Consideremos a verdade destas vítimas da violência, olhemos a realidade com os seus olhos e escutemos as suas histórias com o coração aberto. Assim poderemos reconhecer o abismo do mal no coração da guerra, e não nos turvará o facto de nos tratarem como ingénuos porque escolhemos a paz. 262. Tampouco serão suficientes as normas, se se pensa que a solução para os problemas atuais consiste em dissuadir os outros através do medo, ameaçando-os com o uso de armas nucleares, químicas ou biológicas. Com efeito, «se tomarmos em consideração as principais ameaças contra a paz e a segurança com as suas múltiplas dimensões neste mundo multipolar do século XXI, como, por exemplo, o terrorismo, os conflitos assimétricos, a segurança informática, os problemas ambientais, a pobreza, muitas dúvidas emergem acerca da insuficiência da dissuasão nuclear para responder de modo 243 Carta enc. Pacem in terris (11 de abril de 1963), 127: AAS 55 (1963), 291. - 100 - eficaz a tais desafios. Estas preocupações assumem ainda mais consistência quando consideramos as catastróficas consequências humanitárias e ambientais que derivam de qualquer utilização das armas nucleares com efeitos devastadores indiscriminados e incontroláveis no tempo e no espaço. (…) Devemos perguntar-nos também quanto seja sustentável um equilíbrio baseado no medo, quando de facto ele tende a aumentar o temor e a ameaçar as relações de confiança entre os povos. A paz e a estabilidade internacionais não podem ser fundadas num falso sentido de segurança, na ameaça de uma destruição recíproca ou de um aniquilamento total, na manutenção de um equilíbrio de poder. (…) Em tal contexto, o objetivo final da eliminação total das armas nucleares torna-se um desafio mas também um imperativo moral e humanitário. (...) A crescente interdependência e a globalização significam que a resposta que se der à ameaça de armas nucleares deve ser coletiva e planeada, baseada na confiança recíproca, que só pode ser construída através do diálogo sinceramente dirigido para o bem comum e não para a tutela de interesses velados ou particulares». 244 E, com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo mundial, 245 para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem de abandonar os seus países à procura duma vida mais digna. A pena de morte 263. Há outra maneira de eliminar o outro, não destinada aos países, mas às pessoas: é a pena de morte. São João Paulo II declarou, de forma clara e firme, que a mesma é inadequada no plano moral e já não é necessária no plano penal.246 Não é possível pensar num recuo relativamente a esta posição. Hoje, afirmamos com clareza que «a pena de morte é inadmissível» 247 e a Igreja compromete-se decididamente a propor que seja abolida em todo o mundo.248 244 FRANCISCO, Mensagem à Conferência da ONU finalizada a negociar um instrumento juridicamente vinculante sobre a proibição das armas nucleares (28 de março de 2017): AAS 109 (2017), 394-396. 245 Cf. SÃO PAULO VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 51: AAS 59 (1967), 282. 246 Cf. Carta enc.?Evangelium vitae (25 de março de 1995), 56: AAS 87 (1995), 463-464. 247 FRANCISCO, Discurso na comemoração do 25º aniversário do Catecismo da Igreja Católica (11 de outubro de 2017): AAS 109 (2017), 1196. 248 Cf. CONGR. PARA A DOUTRINA DA FÉ, Carta aos Bispos a respeito da nova redação do n.º 2267 do Catecismo da Igreja Católica sobre a pena de morte (1 de agosto de 2018): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 09/VIII/2018), 6-7 e 10. - 101 - 264. No Novo Testamento, ao mesmo tempo que se pede aos indivíduos para não fazerem justiça por si próprios (cf. Rm 12, 19), reconhece-se a necessidade de as autoridades imporem penas àqueles que praticam o mal (cf. Rm 13, 4; 1 Ped 2, 14). Com efeito, «a vida em comum, estruturada em volta de comunidades organizadas, precisa de regras de convivência cuja livre violação exige uma resposta adequada». 249 Isto implica que a autoridade pública legítima possa e deva «infligir penas proporcionadas à gravidade dos delitos» 250 e que se garanta ao poder judiciário «a necessária independência no âmbito da lei». 251 265. Desde os primeiros séculos da Igreja, alguns manifestaram-se claramente contrários à pena de morte. Por exemplo, Lactâncio defendia que «não há qualquer distinção que se possa fazer: sempre será crime matar um homem». 252 O Papa Nicolau I exortava: «Esforçai-vos por livrar da pena de morte não só cada um dos inocentes, mas também todos os culpados». 253 E, por ocasião do julgamento de alguns homicidas que assassinaram dois sacerdotes, Santo Agostinho pediu ao juiz para não tirar a vida aos assassinos, e justificava-o da seguinte maneira: «Não que pretendamos com isto impedir que se tire a indivíduos celerados a liberdade de cometer delitos, mas queremos que, para esse fim, seja suficiente que, deixando-os vivos e sem mutilá-los em parte alguma do corpo, aplicando as leis repressivas, eles sejam afastados da sua agitação insana para serem reconduzidos a uma vida salutar e pacífica, ou que, retirados das suas ações perversas, sejam ocupados nalgum trabalho útil. Também isto é uma condenação, mas quem não entenderia que se trata mais dum benefício que dum suplício, uma vez que não se deixa campo livre à audácia da ferocidade, nem se retira o remédio do arrependimento? (...) Indigna-te contra a iniquidade, mas sem esqueceres a humanidade; não dês livre curso à volúpia da vingança contra as atrocidades dos pecadores, mas pretende antes curar as suas feridas». 254 249 FRANCISCO, Discurso a uma delegação da Associação Internacional de Direito Penal (23 de outubro de 2014): AAS 106 (2014), 840. 250 CONSELHO PONTIFÍCIO «JUSTIÇA E PAZ», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 402. 251 SÃO JOÃO PAULO II, Discurso à Associação Nacional Italiana dos Magistrados (31 de março de 2000), 4: AAS 92 (2000), 633. 252 Divinae Institutiones 6, 20, 17: PL 6, 708. 253 Epistula 97 (responsa ad consulta bulgarorum), 25: PL 119, 991. 254 Epistula ad Marcellinum 133, 1.2: PL 33, 509. - 102 - 266. Os medos e os rancores levam facilmente a entender as penas de maneira vingativa, se não cruel, em vez de as considerar como parte dum processo de cura e reinserção na sociedade. Hoje, «tanto por parte de alguns setores da política como de certos meios de comunicação, por vezes incita-se à violência e à vingança, pública e privada, não só contra quantos são responsáveis por ter cometido delitos, mas também contra aqueles sobre os quais recai a suspeita, fundada ou não, de ter infringido a lei. (...) Há por vezes a tendência a construir deliberadamente inimigos: figuras estereotipadas, que concentram em si todas as caraterísticas que a sociedade sente ou interpreta como ameaçadoras. Os mecanismos de formação destas imagens são os mesmos que, outrora, permitiram a expansão das ideias racistas». 255 Isso tornou particularmente perigoso o costume crescente que há, nalguns países, de recorrer a prisões preventivas, a reclusões sem julgamento e especialmente à pena de morte. 267. Quero assinalar que «é impossível imaginar que hoje os Estados não possam dispor de outro meio, que não seja a pena capital, para defender a vida de outras pessoas do agressor injusto». De particular gravidade se revestem as chamadas execuções extrajudiciais ou extralegais, que «são homicídios deliberados cometidos por alguns Estados e pelos seus agentes, com frequência feitos passar como confrontos com delinquentes, ou apresentados como consequências indesejadas do uso razoável, necessário e proporcional da força para manter e aplicar a lei». 256 268. «Os argumentos contrários à pena de morte são muitos e bem conhecidos. A Igreja frisou oportunamente alguns deles, como a possibilidade da existência de erro judicial e o uso que dela fazem os regimes totalitários e ditatoriais, que a utilizam como instrumento de supressão da dissidência política ou perseguição das minorias religiosas e culturais, todas vítimas que, para as suas respetivas legislações, são “delinquentes”. Por conseguinte, todos os cristãos e homens de boa vontade estão chamados hoje a lutar não só pela abolição da pena de morte, legal ou ilegal, em todas as suas formas, mas também para melhorar as condições carcerárias, no respeito pela dignidade humana das pessoas privadas da liberdade. E relaciono isto com a prisão perpétua. (...) A prisão perpétua é uma pena de morte escondida». 257 255 FRANCISCO, Discurso a uma delegação da Associação Internacional de Direito Penal (23 de outubro de 2014): AAS 106 (2014), 840-841. 256 Ibid.: o. c., 842. 257 Ibidem. - 103 - 269. Lembremos que «nem sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus Se constitui seu garante». 258 A rejeição firme da pena de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a dignidade inalienável de todo o ser humano e aceitar que tenha um lugar neste universo. Visto que não o nego ao pior dos criminosos, não o negarei a ninguém, darei a todos a possibilidade de compartilhar comigo este planeta, apesar do que nos possa separar. 270. Aos cristãos que hesitam e se sentem tentados a ceder a qualquer forma de violência, convido-os a lembrar este anúncio do livro de Isaías: «transformarão as suas espadas em relhas de arado» (2, 4). Para nós, esta profecia encarna em Jesus Cristo, que, ao ver um discípulo excitado pela violência, lhe disse com firmeza: «Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada, morrerão à espada» (Mt 26, 52). Era um eco daquela antiga admoestação: «Ao homem, pedirei contas da vida do homem, seu irmão. A quem derramar o sangue do homem, pela mão do homem será derramado o seu» (Gn 9, 5-6). Esta reação de Jesus, que brotou espontaneamente do seu coração, supera a distância dos séculos e chega até hoje como um apelo incessante. 258 SÃO JOÃO PAULO II, Carta enc.?Evangelium vitae (25 de março de 1995), 9: AAS 87 (1995), 411. - 104 - CAPÍTULO VIII AS RELIGIÕES AO SERVIÇO DA FRATERNIDADE NO MUNDO 271. As várias religiões, ao partir do reconhecimento do valor de cada pessoa humana como criatura chamada a ser filho ou filha de Deus, oferecem uma preciosa contribuição para a construção da fraternidade e a defesa da justiça na sociedade. O diálogo entre pessoas de diferentes religiões não se faz apenas por diplomacia, amabilidade ou tolerância. Como ensinaram os bispos da Índia, «o objetivo do diálogo é estabelecer amizade, paz, harmonia e partilhar valores e experiências morais e espirituais num espírito de verdade e amor». 259 O FUNDAMENTO ÚLTIMO 272. Como crentes, pensamos que, sem uma abertura ao Pai de todos, não podem haver razões sólidas e estáveis para o apelo à fraternidade. Estamos convencidos de que «só com esta consciência de filhos que não são órfãos, podemos viver em paz entre nós». 260 Com efeito, «a razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade». 261 273. Nesta linha, quero lembrar um texto memorável: «Se não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de grupo, de nação contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. Se não se reconhece a verdade transcendente, triunfa a força do poder, e cada um tende a aproveitar-se ao máximo dos meios à sua disposição para impor o próprio interesse ou opinião, sem atender aos direitos do outro. (...) A raiz do totalitarismo moderno, portanto, deve ser individuada na negação da transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível, e precisamente por isso, pela sua própria natureza, sujeito de 259 CONFERÊNCIA DOS BISPOS CATÓLICOS DA ÍNDIA, Response of the church in India to the present day challenges (9 de março de 2016). 260 FRANCISCO, Homilia na Missa matutina de Santa Marta (17 de maio de 2020). 261 BENTO XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 19: AAS 101 (2009), 655. - 105 - direitos que ninguém pode violar: seja indivíduo, grupo, classe, nação ou Estado. Nem tampouco o pode fazer a maioria de um corpo social, lançando-se contra a minoria». 262 274. A partir da nossa experiência de fé e da sabedoria que se vem acumulando ao longo dos séculos e aprendendo também das nossas inúmeras fraquezas e quedas, como crentes das diversas religiões sabemos que tornar Deus presente é um bem para as nossas sociedades. Buscar a Deus com coração sincero, desde que não o ofusquemos com os nossos interesses ideológicos ou instrumentais, ajuda a reconhecer-nos como companheiros de estrada, verdadeiramente irmãos. Julgamos que, «quando se pretende, em nome duma ideologia, expulsar Deus da sociedade, acaba-se adorando ídolos, e bem depressa o próprio homem se sente perdido, a sua dignidade é espezinhada, os seus direitos violados. Conheceis bem a brutalidade a que pode conduzir a privação da liberdade de consciência e da liberdade religiosa, e como desta ferida se gera uma humanidade radicalmente empobrecida, porque fica privada de esperança e de ideais». 263 275. Temos de reconhecer que, «entre as causas mais importantes da crise do mundo moderno, se contam uma consciência humana anestesiada e o afastamento dos valores religiosos, bem como o predomínio do individualismo e das filosofias materialistas que divinizam o homem e colocam os valores mundanos e materiais no lugar dos princípios supremos e transcendentes». 264 Não se pode admitir que, no debate público, só tenham voz os poderosos e os cientistas. Deve haver um lugar para a reflexão que provém de um fundo religioso que recolhe séculos de experiência e sabedoria. «Os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora», mas de facto «são desprezados pela miopia dos racionalismos». 265 276. Por estas razões, embora a Igreja respeite a autonomia da política, não relega a sua própria missão para a esfera do privado. Pelo contrário, não pode nem deve ficar à margem na construção de um mundo melhor nem deixar de «despertar as forças espirituais» 266 que 262 SÃO JOÃO PAULO II, Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 44: AAS 83 (1991), 849. 263 FRANCISCO, Discurso no Encontro Inter-religioso (Tirana – Albânia 21 de setembro de 2014): Insegnamenti II/2 (2014), 277; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 25/IX/2014), 11. 264 FRANCISCO – AHMAD AL-TAYYEB, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 21. 265 FRANCISCO, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 256: AAS 105 (2013), 1123. 266 BENTO XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de dezembro de 2005), 28: AAS 98 (2006), 240. - 106 - possam fecundar toda a vida social. É verdade que os ministros da religião não devem fazer política partidária, própria dos leigos, mas mesmo eles não podem renunciar à dimensão política da existência267 que implica uma atenção constante ao bem comum e a preocupação pelo desenvolvimento humano integral. A Igreja «tem um papel público que não se esgota nas suas atividades de assistência ou de educação», mas busca a «promoção do homem e da fraternidade universal». 268 Não pretende disputar poderes terrenos, mas oferecer-se como «uma família entre as famílias – a Igreja é isto –, disponível (…) para testemunhar ao mundo de hoje a fé, a esperança e o amor ao Senhor mas também àqueles que Ele ama com predileção. Uma casa com as portas abertas... A Igreja é uma casa com as portas abertas, porque é mãe». 269 E como Maria, a Mãe de Jesus, «queremos ser uma Igreja que serve, que sai de casa, que sai dos seus templos, que sai das suas sacristias, para acompanhar a vida, sustentar a esperança, ser sinal de unidade (…) para lançar pontes, abater muros, semear reconciliação». 270 A identidade cristã 277. A Igreja valoriza a ação de Deus nas outras religiões e «nada rejeita do que, nessas religiões, existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que (…) refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens». 271 Todavia, como cristãos, não podemos esconder que, «se a música do Evangelho parar de vibrar nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota da compaixão, a ternura que nasce da confiança, a capacidade da reconciliação que encontra a sua fonte no facto de nos sabermos sempre perdoados-enviados. Se a música do Evangelho cessar de repercutir nas nossas casas, nas nossas praças, nos postos de trabalho, na política e na economia, teremos extinguido a melodia que nos desafiava a lutar pela dignidade de todo o homem e mulher». 272 Outros bebem doutras fontes. Para nós, este manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo. Dele brota, «para o pensamento cristão e para a ação da Igreja, o primado reservado 267 «O ser humano é um animal político» (ARISTÓTELES, Política, parágrafo 1253a, linhas 1-3). 268 BENTO XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 11: AAS 101 (2009), 648. 269 FRANCISCO, Discurso no encontro com a comunidade católica (Rakovsky – Bulgária 6 de maio de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 07/V/2019), 9. 270 IDEM, Homilia durante a Santa Missa (Santiago de Cuba 22 de setembro de 2015): AAS 107 (2015), 1005. 271 CONC. ECUM. VAT. II, Decl. sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs Nostra aetate, 2. 272 FRANCISCO, Discurso no encontro ecuménico (Riga - Letónia 24 de setembro de 2018): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 27/IX/2018), 11. - 107 - à relação, ao encontro com o mistério sagrado do outro, à comunhão universal com a humanidade inteira, como vocação de todos». 273 278. Chamada a encarnar-se em todas as situações e presente através dos séculos em todo o lugar da terra – isto mesmo significa «católica» –, a Igreja pode, a partir da sua experiência de graça e pecado, compreender a beleza do convite ao amor universal. Com efeito, «tudo o que é humano nos diz respeito (...); onde quer que as assembleias dos povos se reúnam para determinar os direitos e os deveres do homem, sentimo-nos honrados, quando no-lo permitem, tomando lugar nelas». 274 Para muitos cristãos, este caminho de fraternidade tem também uma Mãe, chamada Maria. Ela recebeu junto da Cruz esta maternidade universal (cf. Jo 19, 26) e cuida não só de Jesus, mas também do «resto da sua descendência» (Ap 12, 17). Com o poder do Ressuscitado, Ela quer dar à luz um mundo novo, onde todos sejamos irmãos, onde haja lugar para cada descartado das nossas sociedades, onde resplandeçam a justiça e a paz. 279. Como cristãos, pedimos que, nos países onde somos minoria, nos seja garantida a liberdade, tal como nós a favorecemos para aqueles que não são cristãos onde eles são minoria. Existe um direito humano fundamental que não deve ser esquecido no caminho da fraternidade e da paz: é a liberdade religiosa para os crentes de todas as religiões. Esta liberdade manifesta que podemos «encontrar um bom acordo entre culturas e religiões diferentes; testemunha que as coisas que temos em comum são tantas e tão importantes que é possível individuar uma estrada de convivência serena, ordenada e pacífica, na aceitação das diferenças e na alegria de sermos irmãos porque filhos de um único Deus». 275 280. Ao mesmo tempo, pedimos a Deus que fortaleça a unidade dentro da Igreja, unidade que se enriquece com diferenças que se reconciliam pela ação do Espírito Santo. Com efeito, «num só Espírito, fomos todos batizados para formar um só corpo» (1 Cor 12, 13), onde cada um presta a sua contribuição peculiar. Como dizia Santo Agostinho, «o ouvido vê através do olho, e o olho escuta através do ouvido». 276 Também é urgente continuar a 273 IDEM, «Lectio divina» na Pontifícia Universidade Lateranense (26 de março de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 09/IV/2019), 6. 274 SÃO PAULO VI, Carta enc. Ecclesiam suam (6 de agosto de 1964), 54 (101): AAS 56 (1964), 650. 275 FRANCISCO, Discurso às autoridades (Belém – Palestina 25 de maio de 2014): Insegnamenti II/1 (2014), 597; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 31/V/2014), 5. 276 Enarrationes in Psalmos 130, 6: PL 37, 1707. - 108 - dar testemunho dum caminho de encontro entre as várias confissões cristãs. Não podemos esquecer o desejo expresso por Jesus: «Que todos sejam um só» (Jo 17, 21). Ao escutar o seu convite, reconhecemos com tristeza que, no processo de globalização, falta ainda a contribuição profética e espiritual da unidade entre todos os cristãos. Todavia, «apesar de estarmos ainda a caminho para a plena comunhão, já temos o dever de oferecer um testemunho comum do amor de Deus por todas as pessoas, trabalhando em conjunto ao serviço da humanidade». 277 RELIGIÃO E VIOLÊNCIA 281. Entre as religiões, é possível um caminho de paz. O ponto de partida deve ser o olhar de Deus. Porque, «Deus não olha com os olhos, Deus olha com o coração. E o amor de Deus é o mesmo para cada pessoa, seja qual for a religião. E se é um ateu, é o mesmo amor. Quando chegar o último dia e houver a luz suficiente na terra para poder ver as coisas como são, não faltarão surpresas!» 278 282. Também «os crentes precisam de encontrar espaços para dialogar e atuar juntos pelo bem comum e a promoção dos mais pobres. Não se trata de nos tornarmos todos mais volúveis nem de escondermos as convicções próprias que nos apaixonam, para podermos encontrar-nos com outros que pensam de maneira diferente. (…) Com efeito, quanto mais profunda, sólida e rica for uma identidade, mais enriquecerá os outros com a sua contribuição específica». 279 Como crentes, somos desafiados a retornar às nossas fontes para nos concentrarmos no essencial: a adoração de Deus e o amor ao próximo, para que alguns aspetos da nossa doutrina, fora do seu contexto, não acabem por alimentar formas de desprezo, ódio, xenofobia, negação do outro. A verdade é que a violência não encontra fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas nas suas deformações. 283. O culto sincero e humilde a Deus «leva, não à discriminação, ao ódio e à violência, mas ao respeito pela sacralidade da vida, ao respeito pela dignidade e a liberdade dos 277 PAPA FRANCISCO E PATRIARCA ECUMÉNICO BARTOLOMEU, Declaração conjunta (Jerusalém – Israel 25 de maio de 2014), 5: L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 31/V/2014), 22. 278 Do filme de Wim Wenders O Papa Francisco – Um homem de palavra. A esperança é uma mensagem universal (2018). 279 FRANCISCO, Exort. ap. pós-sinodal Querida Amazonia (2 de fevereiro de 2020), 106. - 109 - outros e a um solícito compromisso em prol do bem-estar de todos». 280 Na realidade, «aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor» (1 Jo 4, 8). Por isso, «o terrorismo execrável que ameaça a segurança das pessoas, tanto no Oriente como no Ocidente, tanto no Norte como no Sul, espalhando pânico, terror e pessimismo não se deve à religião – embora os terroristas a instrumentalizem – mas tem origem no cúmulo de interpretações erradas dos textos religiosos, nas políticas de fome, de pobreza, de injustiça, de opressão, de arrogância; por isso, é necessário interromper o apoio aos movimentos terroristas através do fornecimento de dinheiro, de armas, de planos ou justificações e também a cobertura mediática, e considerar tudo isto como crimes internacionais que ameaçam a segurança e a paz mundial. É preciso condenar tal terrorismo em todas as suas formas e manifestações». 281 As convicções religiosas sobre o sentido sagrado da vida humana consentem-nos «reconhecer os valores fundamentais da nossa humanidade comum, valores em nome dos quais se pode e deve colaborar, construir e dialogar, perdoar e crescer, permitindo que o conjunto das diferentes vozes forme um canto nobre e harmonioso, e não gritos fanáticos de ódio». 282 284. Às vezes, a violência fundamentalista desencadeia-se em alguns grupos de qualquer religião pela imprudência dos seus líderes. Mas «o mandamento da paz está inscrito nas profundezas das tradições religiosas que nós representamos. (...) Nós, líderes religiosos, somos chamados a ser verdadeiros “dialogantes”, a agir na construção da paz, e não como intermediários, mas como mediadores autênticos. Os intermediários procuram contentar todas as partes, com a finalidade de obter um lucro para si mesmos. O mediador, ao contrário, é aquele que nada reserva para si próprio, mas que se dedica generosamente, até se consumir, consciente de que o único lucro é a paz. Cada um de nós é chamado a ser um artífice da paz, unindo e não dividindo, extinguindo o ódio em vez de o conservar, abrindo caminhos de diálogo em vez de erguer novos muros». 283 280 IDEM, Homilia durante a Santa Missa (Colombo – Sri Lanka 14 de janeiro de 2015): AAS 107 (2015), 139. 281 FRANCISCO – AHMAD AL-TAYYEB, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 22. 282 FRANCISCO, Discurso no encontro com as autoridades e o corpo diplomático (Sarajevo – BósniaHerzegovina 6 de junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 11/VI/2015), 3. 283 IDEM, Discurso no Encontro internacional organizado pela Comunidade de Santo Egídio (30 de setembro de 2013): Insegnamenti I/2 (2013), 301-302; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 06/X/2013), 11. - 110 - APELO 285. Naquele encontro fraterno, que recordo jubilosamente, com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb «declaramos – firmemente – que as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram – nalgumas fases da história – da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens (…). Com efeito Deus, o Todo-Poderoso, não precisa de ser defendido por ninguém e não quer que o Seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas». 284 Por isso, quero retomar aqui o apelo à paz, justiça e fraternidade que fizemos juntos: «Em nome de Deus, que criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade e os chamou a conviver entre si como irmãos, a povoar a terra e espalhar sobre ela os valores do bem, da caridade e da paz. Em nome da alma humana inocente que Deus proibiu de matar, afirmando que qualquer um que mate uma pessoa é como se tivesse morto toda a humanidade e quem quer que salve uma pessoa é como se tivesse salvo toda a humanidade. Em nome dos pobres, dos miseráveis, dos necessitados e dos marginalizados, a quem Deus ordenou socorrer como um dever exigido a todos os homens e de modo particular às pessoas facultosas e abastadas. Em nome dos órfãos, das viúvas, dos refugiados e dos exilados das suas casas e dos seus países; de todas as vítimas das guerras, das perseguições e das injustiças; dos fracos, de quantos vivem no medo, dos prisioneiros de guerra e dos torturados em qualquer parte do mundo, sem distinção alguma. Em nome dos povos que perderam a segurança, a paz e a convivência comum, tornando-se vítimas das destruições, das ruínas e das guerras. Em nome da “fraternidade humana”, que abraça todos os homens, une-os e tornaos iguais. Em nome desta fraternidade, dilacerada pelas políticas de integralismo e divisão e pelos sistemas de lucro desmesurado e pelas tendências ideológicas odiosas, que manipulam as ações e os destinos dos homens. 284 FRANCISCO – AHMAD AL-TAYYEB, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 22. - 111 - Em nome da liberdade, que Deus deu a todos os seres humanos, criando-os livres e enobrecendo-os com ela. Em nome da justiça e misericórdia, fundamentos da prosperidade e pilares da fé. Em nome de todas as pessoas de boa vontade, presentes em todos os cantos da terra. Em nome de Deus e de tudo isto, (…) declaramos adotar a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério». 285 *** 286. Neste espaço de reflexão sobre a fraternidade universal, senti-me motivado especialmente por São Francisco de Assis e também por outros irmãos que não são católicos: Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Mohandas Gandhi e muitos outros. Mas quero terminar lembrando uma outra pessoa de profunda fé, que, a partir da sua intensa experiência de Deus, realizou um caminho de transformação até se sentir irmão de todos. Refiro-me ao Beato Carlos de Foucauld. 287. O seu ideal duma entrega total a Deus encaminhou-o para uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo o ser humano como um irmão, 286 e pedia a um amigo: «Peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos». 287 Enfim queria ser «o irmão universal». 288 Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos. Que Deus inspire este ideal a cada um de nós. Amen. Oração ao Criador Senhor e Pai da humanidade, que criastes todos os seres humanos com a mesma dignidade, 285 Ibidem. 286 Cf. CARLOS DE FOUCAULD, Meditação sobre o Pai Nosso (23 de janeiro de 1897): Opere spirituali (Roma 1983), 555-562. 287 IDEM, Carta a Henry de Castries (29 de novembro de 1901). 288 IDEM, Carta a Madame de Bondy (7 de janeiro de 1902). Assim o designava também São Paulo VI, elogiando o seu serviço: Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 12: AAS 59 (1967), 263. - 112 - infundi nos nossos corações um espírito fraterno. Inspirai-nos o sonho de um novo encontro, de diálogo, de justiça e de paz. Estimulai-nos a criar sociedades mais sadias e um mundo mais digno, sem fome, sem pobreza, sem violência, sem guerras. Que o nosso coração se abra a todos os povos e nações da terra, para reconhecer o bem e a beleza que semeastes em cada um deles, para estabelecer laços de unidade, de projetos comuns, de esperanças compartilhadas. Amen. Oração cristã ecuménica Deus nosso, Trindade de amor, a partir da poderosa comunhão da vossa intimidade divina infundi no meio de nós o rio do amor fraterno. Dai-nos o amor que transparecia nos gestos de Jesus, na sua família de Nazaré e na primeira comunidade cristã. Concedei-nos, a nós cristãos, que vivamos o Evangelho e reconheçamos Cristo em cada ser humano, para O vermos crucificado nas angústias dos abandonados e dos esquecidos deste mundo e ressuscitado em cada irmão que se levanta. Vinde, Espírito Santo! Mostrai-nos a vossa beleza refletida em todos os povos da terra, para descobrirmos que todos são importantes, que todos são necessários, que são rostos diferentes da mesma humanidade amada por Deus. Amen. - 113 - Dado em Assis, junto do túmulo de São Francisco, na véspera da Memória litúrgica do referido Santo, 3 de outubro do ano 2020, oitavo do meu pontificado. [Franciscus] - 114 - ÍNDICE FRATELLI TUTTI [1-2] …………………....……….……………………. 2 SEM FRONTEIRAS [3-8] …………………………………………………... 2 CAPÍTULO I AS SOMBRAS DUM MUNDO FECHADO SONHOS DESFEITOS EM PEDAÇOS [10-12] …….………………..……….. 5 O fim da consciência histórica [13-14] ……………………………….. 6 SEM UM PROJETO PARA TODOS [15-17] ……… ……………………. 7 O descarte mundial [18-21] ……………...………………….………… 8 Direitos humanos não suficientemente universais [22-24] …….. 9 Conflito e medo [25-28] ………………………..…………….....… 11 GLOBALIZAÇÃO E PROGRESSO SEM UM RUMO COMUM [29-31] ………… 12 AS PANDEMIAS E OUTROS FLAGELOS DA HISTÓRIA [32-36] ……………...… 13 SEM DIGNIDADE HUMANA NAS FRONTEIRAS [37-41] ………………… 15 A ILUSÃO DA COMUNICAÇÃO [42-43] …………………………………...… 17 Agressividade despudorada [44-46] …………………………….… 18 Informação sem sabedoria [47-50] ……………………………… 19 SUJEIÇÕES E AUTODEPRECIAÇÃO [51-53] ………………..……….….… 20 ESPERANÇA [54-55] …………………………………………………… 21 CAPÍTULO II UM ESTRANHO NO CAMINHO A PERSPETIVA DE FUNDO [57-62] ……….…….…………………………… 23 O ABANDONADO [63-68] …………………………………….………..………….. 25 UMA HISTÓRIA QUE SE REPETE [69-84] …………………………….………. 26 AS PERSONAGENS [72-76] ……………………………………………..……. 27 RECOMEÇAR [77-79] ……………………………..……………………...…. 29 O PRÓXIMO SEM FRONTEIRAS [80-83] ……………..……….………………..…. 30 A PROVOCAÇÃO DO FORASTEIRO [84-86] …………………………….…….… 31 - 115 - CAPÍTULO III PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO MAIS ALÉM [88-90] …………………………………………..………….… 33 O valor único do amor [91-94] ………………………………..………... 34 A PROGRESSIVA ABERTURA DO AMOR [95-96]…………………………………... 35 Sociedades abertas que integram a todos [97-98] …………….…….... 36 Noções inadequadas dum amor universal [99-100] …………..……..…. 37 SUPERAR UM MUNDO DE SÓCIOS [101-102] ………………………………….. 38 Liberdade, igualdade e fraternidade [103-105] ………………………..….. 38 AMOR UNIVERSAL QUE PROMOVE AS PESSOAS [106-111] …..……………..….. 39 PROMOVER O BEM MORAL [112-113] ……………………………………...….. 41 O valor da solidariedade [114-117] ………………..……….……..….. 42 REPROPOR A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE [118-120] ……..…………..….. 43 Direitos sem fronteiras [121-123] ………………………….…………..….. 45 Direitos dos povos [124-127] ……………………….……………..….. 46 CAPÍTULO IV UM CORAÇÃO ABERTO AO MUNDO INTEIRO O LIMITE DAS FRONTEIRAS [129-132] ………………………………………….. 48 OS DONS RECÍPROCOS [133-136] ………………………………..………… 49 O intercâmbio fecundo [137-138] ……………………………………....……. 51 Gratuitidade que acolhe [139-141] ………..…..……………….…….. 52 LOCAL E UNIVERSAL [142-143] ……………………………………...……..…... 53 O sabor local [144-145] ……………………………………………..…... 53 O horizonte universal [146-150] ………………….…………………..…... 54 A partir da própria região [151-153] ………..……………………..…... 56 CAPÍTULO V A POLÍTICA MELHOR POPULISMOS E LIBERALISMOS [155] ………………………………………….….. 58 Popular ou populista [156-162] ………………………………………….….. 58 - 116 - Valores e limites das visões liberais [163-169] ………………………..... 61 O PODER INTERNACIONAL [170-175] ………………………………………..….…. 64 UMA CARIDADE SOCIAL E POLÍTICA [176] ………………………..……….… . 66 A política necessária [177-179] …………………………………….….… . 67 O amor político [180-182] ………………………………………………… . 68 Amor eficaz [183-185] ……………………………………………….… . 69 A ATIVIDADE DO AMOR POLÍTICO [186] …………….…......…………….… . 70 Os sacrifícios do amor[187-188] …………………….………………….… . 70 Amor que integra e reúne [190-192] ………………………………….… . 72 MAIS FECUNDIDADE QUE RESULTADOS [193-197] ……………….………….… . 73 CAPÍTULO VI DIÁLOGO E AMIZADE SOCIAL O DIÁLOGO SOCIAL PARA UMA NOVA CULTURA [199-202] …………. .….… 76 Construir em comum [203-205] ……………………………………………. 77 A BASE DOS CONSENSOS [206-210] …………..……………………………….. 79 O consenso e a verdade [211-214] …………….……………….…..…. 80 UMA NOVA CULTURA [215] ………….……………………………………..… 82 O encontro feito cultura [216-217] ……………………………....…… 82 O prazer de reconhecer o outro [218-221] ……………..………….……. 83 RECUPERAR A AMABILIDADE [222-224] ……………….….…..……………. 84 CAPÍTULO VII PERCURSOS DUM NOVO ENCONTRO RECOMEÇAR A PARTIR DA VERDADE [226-227] ……………………….….… 86 A ARQUITETURA E O ARTESANATO DA PAZ [228-232] ………………..……. 87 Sobretudo com os últimos [233-235] ………………………………….. 89 O VALOR E O SIGNIFICADO DO PERDÃO [236] …… ……………………..…..…. 90 O conflito inevitável [237-240] ………….……..……………………..… 91 As lutas legítimas e o perdão [241-243] ……………….……..…… 92 A verdadeira superação [244-245] …………………..………….……. 93 A MEMÓRIA [246-249] ……………………………………………..………. 94 Perdão sem esquecimentos [250-254] ………………...………………. 95 - 117 - A GUERRA E A PENA DE MORTE [255] ………………….…….………………. 97 A injustiça da guerra [256-262] …………………..……………………. 97 A pena de morte [263-270] ………………………………………………. 100 CAPÍTULO VIII AS RELIGIÕES AO SERVIÇO DA FRATERNIDADE NO MUNDO O FUNDAMENTO ÚLTIMO [272-276] ……………………………………….… 104 A identidade cristã [277-280] …………………………………….……. 106 RELIGIÃO E VIOLÊNCIA [281-284] ……….……..………………………….. 108 APELO [285-287] ……………………………………...……………….…..…. 110 Oração ao Criador …………..……….……………………..….…..…… 111 Oração cristã ecuménica …………………………………………….……. 112 F I

 

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