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FRATELLI TUTTI-Parte 5

CAPÍTULO III PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO 87. O ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude «a não ser no sincero dom de si mesmo» 62 aos outros. E não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros: «Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que comunico com o outro». 63 Isso explica por que ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já que «a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte». 64 MAIS ALÉM 88. A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro. 65 Feitos para o amor, existe em cada um de nós «uma espécie de lei de “êxtase”: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser». 66 Por isso, «o homem deve conseguir um dia partir de si mesmo, deixar de procurar apoio em si mesmo, deixar-se levar». 67 89. Mas não posso reduzir a minha vida à relação com um pequeno grupo, nem mesmo à minha própria família, porque é impossível compreender-me a mim mesmo sem uma teia mais ampla de relações: e não só as do momento atual, mas também as relações dos 62 CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 24. 63 GABRIEL MARCEL, Du refus à l’invocation (Paris 1940), 50. 64 FRANCISCO, Alocução do Angelus (10 de novembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semana  portuguesa de 12/XI/2019), 3. 65 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, Scriptum super Sententiis, lib. III, dist. 27, q. 1, a. 1, ad 4: «Dicitur amor extasim facere, et fervere, quia quod fervet extra se bullit et exhalat – diz-se que o amor produz êxtase e efervescência, contanto que o efervescente ferva fora de si e expire». 66 KAROL WOJTILA, Amore e responsabilità (Casale Monferrato 1983), 90. 67 KARL RAHNER, Kleines Kirchenjahr. Ein Gang durch den Festkreis (Friburgo 1981), 30. - 34 - anos anteriores que me foram configurando ao longo da minha vida. A minha relação com uma pessoa, que estimo, não pode ignorar que esta pessoa não vive só para a sua relação comigo, nem eu vivo apenas relacionando-me com ela. A nossa relação, se é sadia e autêntica, abre-nos aos outros que nos fazem crescer e enriquecem. O mais nobre sentido social hoje facilmente fica anulado sob intimismos egoístas com aparência de relações intensas. Pelo contrário, o amor autêntico, que ajuda a crescer, e as formas mais nobres de amizade habitam em corações que se deixam completar. O vínculo de casal e de amizade está orientado para abrir o coração em redor, para nos tornar capazes de sair de nós mesmos até acolher a todos. Os grupos fechados e os casais autorreferenciais, que se constituem como um «nós» contraposto ao mundo inteiro, habitualmente são formas idealizadas de egoísmo e mera autoproteção. 90. Não é sem razão que muitas populações pequenas e sobrevivendo em áreas desérticas conseguiram desenvolver uma generosa capacidade de acolhimento dos  peregrinos que passavam, dando assim um sinal exemplar do dever sagrado da hospitalidade. Viveram-no também as comunidades monásticas medievais, como se verifica na Regra de São Bento. Embora pudessem perturbar a ordem e o silêncio dos mosteiros, Bento exigia que se tratasse os pobres e os peregrinos «com toda a consideração e carinho possíveis». 68 A hospitalidade é uma maneira concreta de não se privar deste desafio e deste dom que é o encontro com a humanidade mais além do próprio grupo. Aquelas pessoas reconheciam que todos os valores por elas cultivados deviam ser acompanhados por esta capacidade de se transcender a si mesmas numa abertura aos outros.

O valor único do amor 91. As pessoas podem desenvolver algumas atitudes que apresentam como valores morais: fortaleza, sobriedade, laboriosidade e outras virtudes. Mas, para orientar adequadamente os atos das várias virtudes morais, é necessário considerar também a medida em que eles realizam um dinamismo de abertura e união para com outras pessoas. Este dinamismo é a caridade, que Deus infunde. Caso contrário, talvez tenhamos só uma aparência de virtudes, que serão incapazes de construir a vida em comum. Por isso, dizia São Tomás de Aquino – citando Santo Agostinho – que a temperança duma pessoa 68 Regula, 53, 15: «Pauperum et peregrinorum maxime susceptioni cura sollicite exhibeatur»
avarenta nem sequer era virtuosa.69 Com outras palavras, explicava São Boaventura que as restantes virtudes, sem a caridade, não cumprem estritamente os mandamentos «como Deus os compreende». 70 92. A estatura espiritual duma vida humana é medida pelo amor, que constitui «o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana». 71 Todavia há crentes que pensam que a sua grandeza está na imposição das suas ideologias aos outros, ou na defesa violenta da verdade, ou em grandes demonstrações de força. Todos nós, crentes, devemosreconhecer isto: em primeiro lugar está o amor, o amor nunca deve ser colocado em risco, o maior perigo é não amar (cf. 1 Cor 13, 1-13). 93. Procurando especificar em que consiste a experiência de amar, que Deus torna possível com a sua graça, São Tomás de Aquino explicava-a como um movimento que centra a atenção no outro «considerando-o como um só comigo mesmo». 72 A atenção afetiva prestada ao outro provoca uma orientação que leva a procurar o seu bem gratuitamente. Tudo isto parte duma estima, duma apreciação que, em última análise, é o que está por detrás da palavra «caridade»: o ser amado é «caro» para mim, ou seja, é estimado como de grande valor.73 E «do amor, pelo qual uma pessoa me agrada, depende que lhe dê algo grátis». 74 94. Sendo assim o amor implica algo mais do que uma série de ações benéficas. As  ações derivam duma união que propende cada vez mais para o outro, considerando-o precioso, digno, aprazível e bom, independentemente das aparências físicas ou morais. O amor ao outro por ser quem é, impele-nos a procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando esta forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos. A PROGRESSIVA ABERTURA DO AMOR 69 Cf. Summa theologiae II-II, q. 23, art. 7; SANTO AGOSTINHO, Contra Julianum, 4, 18: PL 44, 748: «De quantos prazeres se privam os avarentos, para aumentar os seus tesouros ou com medo de os ver diminuir!» 70 «Secundum acceptionem divinam»: SÃO BOAVENTURA, Scriptum super Sententiis, lib. III, dist. 27, a. 1, q. 1, concl. 4. 71 BENTO XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de dezembro de 2005), 15: AAS 98 (2006), 230  72 Summa theologiae II-II, q. 27, art. 2, resp. 73 Cf. ibid. I-II, q. 26, art. 3, resp. 74 Ibid., q. 110, art. 1, resp.
95. Enfim, o amor coloca-nos em tensão para a comunhão universal. Ninguém amadurece nem alcança a sua plenitude, isolando-se. Pela sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, maior capacidade de acolher os outros, numa aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um sentido pleno de mútua pertença. Disse-nos Jesus: «Vós sois todos irmãos» (Mt 23, 8). 96. Esta necessidade de ir além dos próprios limites vale também para as diferentes regiões e países. De facto, «o número sempre crescente de ligações e comunicações que envolvem o nosso planeta torna mais palpável a consciência da unidade e partilha dum destino comum entre as nações da terra. Assim, nos dinamismos da história – independentemente da diversidade das etnias, das sociedades e das culturas –, vemos semeada a vocação a formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros». 75 Sociedades abertas que integram a todos 97. Existem periferias que estão próximas de nós, no centro duma cidade ou na própria família. Também há um aspeto da abertura universal do amor que não é geográfico, mas existencial: a capacidade diária de alargar o meu círculo, chegar àqueles que espontaneamente não sinto como parte do meu mundo de interesses, embora se encontrem perto de mim. Por outro lado, cada irmã ou cada irmão que sofre, abandonado ou ignorado pela minha sociedade, é um forasteiro existencial, embora tenha nascido no mesmo país. Pode ser um cidadão com todos os documentos em ordem, mas fazem-no sentir como um estrangeiro na sua própria terra. O racismo é um vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer, dissimula-se mas está sempre à espreita. 98. Quero lembrar estes «exilados ocultos», que são tratados como corpos estranhos à sociedade.76 Muitas pessoas com deficiência «sentem que vivem sem pertença nem participação». Ainda há tanto «que as impede de beneficiar da plena cidadania». O objetivo não é apenas cuidar delas, mas «acompanhá-las e “ungi-las” de dignidade para 75 FRANCISCO, Mensagem para o 47º Dia Mundial da Paz de 2014 (8 de dezembro de 2013), 1: AAS 106 (2014), 22. 76 Cf.? IDEM, Alocução do Angelus (29 de dezembro de 2013): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 02/I/2014), 12;?Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (12 de janeiro  
de 2015): AAS 107 (2015), 165. - 37 - uma participação ativa na comunidade civil e eclesial. Trata-se de um caminho exigente e também cansativo, que contribuirá cada vez mais para a formação de consciências capazes de reconhecer cada um como pessoa única e irrepetível». Penso igualmente nos «idosos, que, inclusive por causa da sua deficiência, são por vezes sentidos como um peso». Mas todos podem dar «uma contribuição singular para o bem comum através de sua biografia original». Permiti que insista: «Tende a coragem de dar voz àqueles que são discriminados por causa de sua condição de deficiência, porque infelizmente, em certas nações, ainda hoje é difícil reconhecê-los como pessoas de igual dignidade». 7   Noções inadequadas dum amor universal 99. O amor que se estende para além das fronteiras está na base daquilo que chamamos «amizade social» em cada cidade ou em cada país. Se for genuína, esta amizade social dentro duma sociedade é condição para possibilitar uma verdadeira abertura universal. Não se trata daquele falso universalismo de quem precisa de viajar constantemente, porque não suporta nem ama o próprio povo. Quem olha para a sua gente com desprezo, estabelece na própria sociedade categorias de primeira e segunda classe, de pessoas com mais ou menos dignidade e direitos. Deste modo, nega que haja espaço para todos. 100. Também não estou a propor um universalismo autoritário e abstrato, ditado ou planificado por alguns e apresentado como um presumível ideal para homogeneizar, dominar e saquear. Há um modelo de globalização que «visa conscientemente uma uniformidade unidimensional e procura eliminar todas as diferenças e as tradições numa busca superficial de unidade. (...) Se uma globalização pretende fazer a todos iguais, como se fosse uma esfera, tal globalização destrói a riqueza e a singularidade de cada pessoa e de cada povo». 78 Este falso sonho universalista acaba por privar o mundo da variedade das suas cores, da sua beleza e, em última análise, da sua humanidade. Com efeito, «o futuro não é “monocromático”, mas – se tivermos coragem para isso – podemos contemplá-lo na variedade e na diversidade das contribuições que cada um pode dar.
FRANCISCO, Mensagem para o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência (3 de dezembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 10/XII/2019), 4. 78 IDEM, Discurso no Encontro em prol da liberdade religiosa (Filadélfia – Estados Unidos d’América 26 de setembro de 2015): AAS 107 (2015), 1050-1051. - 38 - Como precisa a nossa família humana de aprender a viver conjuntamente em harmonia    paz, sem necessidade de sermos todos iguais!» 79 SUPERAR UM MUNDO DE SÓCIOS 101. Retomemos agora a parábola do bom samaritano que ainda tem muito a propor-nos. Havia um homem ferido no caminho. As personagens que passavam ao lado dele não se concentravam na chamada íntima a fazer-se próximos, mas na sua função, na posição social que ocupavam, numa profissão prestigiosa na sociedade. Sentiam-se importantes para a sociedade de então, e o que mais as preocupava era o papel que deviam desempenhar. O homem ferido e abandonado no caminho era um incómodo para este projeto, uma interrupção; e tratava-se de alguém que, por sua vez, não ocupava função alguma. Era um «ninguém», não pertencia a um grupo considerado notável, não tinha papel algum na construção da história. Entretanto o generoso samaritano opunha-se a estas classificações fechadas, embora ele mesmo estivesse fora de qualquer uma destas categorias, sendo simplesmente um estranho sem um lugar próprio na sociedade. Assim, livre de todas as etiquetas e estruturas, foi capaz de interromper a sua viagem, mudar os   seus programas, estar disponível para se abrir à surpresa do homem ferido que precisava dele. 102. Que reação poderia provocar hoje essa narração, num mundo onde constantemente aparecem e crescem grupos sociais, que se agarram a uma identidade que os separa dos outros? Como pode aquela impressionar pessoas que tendem a organizar-se de maneira a impedir qualquer presença estranha que possa turbar tal identidade e esta organização autodefensiva e autorreferencial? Neste esquema, fica excluída a possibilidade de fazerse próximo, sendo possível apenas ser próximo de quem me permite consolidar os benefícios pessoais. Assim o termo «próximo» perde todo o significado, fazendo sentido apenas a palavra «sócio», aquele que é associado para determinados interesses.8   Liberdade, igualdade e fraternidade 79 IDEM, Discurso no Encontro com os jovens (Tóquio – Japão 25 de novembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 03/XII/2019), 14. 80 Nestas considerações, deixo-me inspirar pelo pensamento de Paul Ricoeur, «Le socius et le prochain»,in: IDEM, Histoire et vérité (Paris 1967), 113-127.
103. A fraternidade não é resultado apenas de situações onde se respeitam as liberdades individuais, nem mesmo da prática duma certa equidade. Embora sejam condições que a tornam possível, não bastam para que surja como resultado necessário a fraternidade. Esta tem algo de positivo a oferecer à liberdade e à igualdade. Que sucede quando não há a fraternidade conscientemente cultivada, quando não há uma vontade política de fraternidade, traduzida numa educação para a fraternidade, o diálogo, a descoberta da reciprocidade e enriquecimento mútuo como valores? Sucede que a liberdade se atenua, predominando assim uma condição de solidão, de pura autonomia para pertencer a alguém ou a alguma coisa, ou apenas para possuir e desfrutar. Isso não esgota de maneira alguma a riqueza da liberdade, que se orienta sobretudo para o amor. 104. Tampouco se alcança a igualdade definindo, abstratamente, que «todos os seres humanos são iguais», mas resulta do cultivo consciente e pedagógico da fraternidade. Aqueles que são capazes apenas de ser sócios, criam mundos fechados. Em semelhante esquema, que sentido pode ter a pessoa que não pertence ao círculo dos sócios e chega sonhando com uma vida melhor para si e sua família? 105. O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade. Nem pode sequer preservar-nos de tantos males, que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer. Ilude. Faz-nos crer que tudo se reduz a deixar à rédea solta as próprias ambições, como se, acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum. AMOR UNIVERSAL QUE PROMOVE AS PESSOAS 106. Para se caminhar rumo à amizade social e à fraternidade universal, há que fazer um reconhecimento basilar e essencial: dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância. Se cada um vale assim tanto, temos de dizer clara e firmemente que «o simples facto de ter nascido num lugar com menores    recursos ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente». 81 Trata-se de um princípio elementar da vida social que é, habitualmente e de várias maneiras, ignorado por quantos sentem que não convém à sua visão do mundo ou não serve os seus objetivos. 81 FRANCISCO, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 190: AAS 105 (2013), 1100.
107. Todo o ser humano tem direito de viver com dignidade e desenvolver-se integralmente, e nenhum país lhe pode negar este direito fundamental. Todos o possuem, mesmo quem é pouco eficiente porque nasceu ou cresceu com limitações. De facto, isto não diminui a sua dignidade imensa de pessoa humana, que se baseia, não nas circunstâncias, mas no valor do seu ser. Quando não se salvaguarda este princípio elementar, não há futuro para a fraternidade nem para a sobrevivência da humanidade. 108. Há sociedades que acolhem apenas parcialmente este princípio. Aceitam que haja possibilidades para todos, mas, suposto isto, defendem que tudo depende de cada um. Segundo esta perspetiva parcial, não teria sentido «investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na vida». 82 Investir a favor das pessoas frágeis pode não ser rentável, pode implicar menor eficiência; requer um Estado presente e ativo e instituições da sociedade civil que ultrapassem a liberdade dos mecanismos eficientistas de certos sistemas económicos, políticos ou ideológicos, porque estão verdadeiramente orientados em primeiro lugar para as pessoas e o bem comum. 109. Alguns nascem em famílias com boas condições económicas, recebem boa educação, crescem bem alimentados, ou possuem por natureza notáveis capacidades. Seguramente não precisarão dum Estado ativo, e apenas pedirão liberdade. Mas, obviamente, não se aplica a mesma regra a uma pessoa com deficiência, a alguém que nasceu num lar extremamente pobre, a alguém que cresceu com uma educação de baixa qualidade e com reduzidas possibilidades para cuidar adequadamente das suas enfermidades. Se a sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de   mercado e da eficiência, não há lugar para tais pessoas, e a fraternidade não passará duma palavra romântica. 110. A verdade é que «a simples proclamação da liberdade económica, enquanto as condições reais impedem que muitos possam efetivamente ter acesso a ela (...), torna-se um discurso contraditório». 83 Palavras como liberdade, democracia ou fraternidade esvaziam-se de sentido. Na realidade, «enquanto o nosso sistema económico-social ainda produzir uma só vítima que seja e enquanto houver uma pessoa descartada, não poderá 82 Ibid., 209: o. c., 1107. 83 FRANCISCO, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 129: AAS 107 (2015), 899
haver a festa da fraternidade universal». 84 Uma sociedade humana e fraterna é capaz de preocupar-se por garantir, de modo eficiente e estável, que todos sejam acompanhados no percurso da sua vida, não apenas para assegurar as suas necessidades básicas, mas para que possam dar o melhor de si mesmos, ainda que o seu rendimento não seja o melhor, mesmo que sejam lentos, embora a sua eficiência não seja relevante. 111. A pessoa humana, com os seus direitos inalienáveis, está naturalmente aberta a criar vínculos. Habita nela, radicalmente, o apelo a transcender-se a si mesma no encontro com os outros. «É preciso, porém, ter cuidado para não cair em alguns equívocos que podem surgir de um errado conceito de direitos humanos e de um abuso paradoxal dos mesmos. De facto, há hoje a tendência para uma reivindicação crescente de direitos individuais – sinto-me tentado a dizer individualistas –, que esconde uma conceção de pessoa humana separada de todo o contexto social e antropológico, quase como uma «mónada» (monás) cada vez mais insensível (…). Na realidade, se o direito de cada um não está harmoniosamente ordenado para o bem maior, acaba por conceber-se sem limitações e, por conseguinte, tornar-se fonte de conflito e violência». 85 PROMOVER O BEM MORAL 112. Não podemos deixar de afirmar que o desejo e a busca do bem dos outros e da humanidade inteira implicam também procurar um desenvolvimento das pessoas e das sociedades nos distintos valores morais que concorrem para um amadurecimento integral. No Novo Testamento, menciona-se um fruto do Espírito Santo (cf. Gal 5, 22), expresso em grego pela palavra agathosyne. Indica o apego ao bem, a busca do bem; mais ainda, é buscar aquilo que vale mais, o melhor para os outros: o seu amadurecimento, o seu crescimento numa vida saudável, o cultivo dos valores e não só o bem-estar material. No latim, há um termo semelhante: bene-volentia, isto é, a atitude de querer o bem do outro. É um forte desejo do bem, uma inclinação para tudo o que seja bom e exímio, que impele a encher a vida dos outros com coisas belas, sublimes, edificantes. 113. Nesta linha, com tristeza, volto a destacar que «vivemos já muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade; chegou o 84 IDEM, Mensagem para o evento «Economy of Francesco» (1 de maio de 2019): Insegnamenti II,2 (2014), 625-626; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 21/V/2019), 7. 85 IDEM, Discurso no Parlamento Europeu (Estrasburgo 25 de novembro de 2014): AAS 106 (2014), 997
momento de reconhecer que esta alegre superficialidade de pouco nos serviu. Uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses». 86 Voltemos a promover o bem, para nós mesmos e para toda a humanidade, e assim caminharemos juntos para um crescimento genuíno e integral. Cada sociedade precisa de garantir a transmissão dos valores; caso contrário, transmitemse o egoísmo, a violência, a corrupção nas suas diversas formas, a indiferença e, em última análise, uma vida fechada a toda a transcendência e entrincheirada nos interesses individuais. O valor da solidariedade 114. Quero destacar a solidariedade, que «como virtude moral e comportamento social, fruto da conversão pessoal, exige empenho por parte duma multiplicidade de sujeitos que detêm responsabilidades de carácter educativo e formativo. Penso em primeiro lugar nas famílias, chamadas a uma missão educativa primária e imprescindível. Constituem o primeiro lugar onde se vivem e transmitem os valores do amor e da fraternidade, da convivência e da partilha, da atenção e do cuidado pelo outro. São também o espaço privilegiado para a transmissão da fé, a começar por aqueles primeiros gestos simples de devoção que as mães ensinam aos filhos. Quanto aos educadores e formadores que têm a difícil tarefa de educar as crianças e os jovens, na escola ou nos vários centros de agregação infantil e juvenil, devem estar cientes de que a sua responsabilidade envolve as dimensões moral, espiritual e social da pessoa. Os valores da liberdade, respeito mútuo e solidariedade podem ser transmitidos desde a mais tenra idade. (…) Também os agentes culturais e dos meios de comunicação social têm responsabilidades no campo da educação e da formação, especialmente na sociedade atual onde se vai difundindo cada vez mais o acesso a instrumentos de informação e comunicação». 87 115. Nestes momentos em que tudo parece diluir-se e perder consistência, faz-nos bem invocar a solidez, 88 que deriva do facto de nos sabermos responsáveis pela fragilidade dos outros na procura dum destino comum. A solidariedade manifesta-se concretamente no serviço, que pode assumir formas muito variadas de cuidar dos outros. O serviço é, «em 86 Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 229: AAS 107 (2015), 937. 87 FRANCISCO, Mensagem para o 49º Dia Mundial da Paz de 2016 (8 de dezembro de 2015), 6: AAS 108 (2016), 57-58. 88 A solidez está na raiz etimológica da palavra solidariedade. Esta, segundo o significado ético-político assumido nos últimos dois séculos, gera uma construção social segura e firme. - 43 - grande parte, cuidar da fragilidade. Servir significa cuidar dos frágeis das nossas famílias, da nossa sociedade, do nosso povo». Nesta tarefa, cada um é capaz «de pôr de lado as suas exigências, expetativas, desejos de omnipotência, à vista concreta dos mais frágeis (…). O serviço fixa sempre o rosto do irmão, toca a sua carne, sente a sua proximidade e, em alguns casos, até “padece” com ela e procura a promoção do irmão. Por isso, o serviço nunca é ideológico, dado que não servimos ideias, mas pessoas». 89 116. Os últimos, em geral, «praticam aquela solidariedade tão especial que existe entre quantos sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido, ou pelo menos tem grande vontade de esquecer. Solidariedade é uma palavra que nem sempre agrada; diria que algumas vezes a transformamos num palavrão, que não se pode dizer; mas é uma palavra que expressa muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais. É fazer face aos efeitos destrutivos do império do dinheiro (...). A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma forma de fazer história e é isto que os movimentos populares fazem». 90 117. Quando falamos em cuidar da casa comum, que é o planeta, fazemos apelo àquele mínimo de consciência universal e de preocupação pelo cuidado mútuo que ainda possa existir nas pessoas. De facto, se alguém tem água de sobra mas poupa-a pensando na     humanidade, é porque atingiu um nível moral que lhe permite transcender-se a si mesmo e ao seu grupo de pertença. Isto é maravilhosamente humano! Requer-se este mesmo comportamento para reconhecer os direitos de todo o ser humano, incluindo os nascidos fora das nossas próprias fronteiras. REPROPOR A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE 118. O mundo existe para todos, porque todos nós, seres humanos, nascemos nesta terra com a mesma dignidade. As diferenças de cor, religião, capacidade, local de nascimento, 89 FRANCISCO, Homilia na Santa Missa (Havana – Cuba 20 de setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 24/IX/2015), 6.8. 90 IDEM, Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos populares (28 de outubro de   2014): AAS 106 (2014), 851-852.
lugar de residência e muitas outras não podem antepor-se nem ser usadas para justificar privilégios de alguns em detrimento dos direitos de todos. Por conseguinte, como comunidade, temos o dever de garantir que cada pessoa viva com dignidade e disponha de adequadas oportunidades para o seu desenvolvimento integral. 119. Nos primeiros séculos da fé cristã, vários sábios desenvolveram um sentido universal na sua reflexão sobre o destino comum dos bens criados.91 Isto levou a pensar que, se alguém não tem o necessário para viver com dignidade, é porque outrem se está a apropriar do que lhe é devido. São João Crisóstomo resume isso, dizendo que, «não fazer os pobres participar dos próprios bens, é roubar e tirar-lhes a vida; não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos». 92 E São Gregório Magno di-lo assim: «Quando damos aos indigentes o que lhes é necessário, não oferecemos o que é nosso; limitamo-nos a restituir o que lhes pertence». 93 120. Faço minhas e volto a propor a todos algumas palavras de São João Paulo II, cuja veemência talvez tenha passado despercebida: «Deus deu a terra a todo género humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém». 94 Nesta linha, lembro que «a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada». 95 O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social», 96 é um direito natural, primordial e prioritário.97 Todos os outros direitos sobre os bens necessários para a realização integral das pessoas, quaisquer que sejam eles incluindo o da propriedade privada, «não devem –   como afirmava São Paulo VI – impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização». 98 O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, e isto tem 91 Cf. SÃO BASÍLIO, Homilia 21. Quod rebus mundanis adhaerendum non sit, 3 e 5: PG 31, 545-549; Regulae brevius tractatae, 92: PG 31, 1145-1148; SÃO PEDRO CRISÓLOGO, Sermo 123: PL 52, 536- 540; SANTO AMBRÓSIO, De Nabuthe 27.52: PL 14, 738-739; SANTO AGOSTINHO, In Iohannis Evangelium 6, 25: PL 35, 1436-1437. 92 De Lazarum Concio 2, 6: PG 48, 992D. 93 Regula pastoralis 3, 21: PL 77, 87. 94 Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 31: AAS 83 (1991), 831. 95 FRANCISCO, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 93: AAS 107 (2015), 884. 96 SÃO JOÃO PAULO II, Carta enc. Laborem exercens (14 de setembro de 1981), 19: AAS 73 (1981), 626. 97 Cf. CONSELHO PONTIFÍCIO «JUSTIÇA E PAZ», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 172. 98 Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 22: AAS 59 (1967), 268
consequências muito concretas que se devem refletir no funcionamento da sociedade. Mas acontece muitas vezes que os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática. Direitos sem fronteiras 121. Por conseguinte, ninguém pode ser excluído; não importa onde tenha nascido, e menos ainda contam os privilégios que outros possam ter porque nasceram em lugares com maiores possibilidades. Os confins e as fronteiras dos Estados não podem impedir que isto se cumpra. Assim, como é inaceitável que uma pessoa tenha menos direitos pelo simples facto de ser mulher, de igual modo é inaceitável que o local de nascimento ou de residência determine, de por si, menores oportunidades de vida digna e de desenvolvimento. 122. O desenvolvimento não deve orientar-se para a acumulação sempre maior de poucos, mas há de assegurar «os direitos humanos, pessoais e sociais, económicos e políticos, incluindo os direitos das nações e dos povos». 99 O direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres; nem acima do respeito pelo ambiente, pois «quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos». 100 123. É verdade que a atividade dos empresários «é uma nobre vocação, orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos». 101 Deus incita-nos, esperando que desenvolvamos as capacidades que Ele nos deu, bem como as potencialidades de que encheu o universo. Nos seus desígnios, cada homem é chamado a promover o seu próprio desenvolvimento, 102 e isto inclui a implementação das capacidades económicas e tecnológicas para fazer crescer os bens e aumentar a riqueza. Mas estas capacidades dos empresários, que são um dom de Deus, deveriam em todo o caso orientar-se claramente para o desenvolvimento das outras pessoas e a superação da miséria, especialmente através da criação de oportunidades de trabalho diversificadas. A par do direito de 99 SÃO JOÃO PAULO II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de dezembro de 1987), 33: AAS 80 (1988), 557. 100 FRANCISCO, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 95: AAS 107 (2015), 885. 101 Ibid., 129: o. c., 899. 102 Cf. SÃO PAULO VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 15: AAS 59 (1967), 265; BENTO XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 16: AAS 101 (2009), 652. - 46 - propriedade privada, sempre existe o princípio mais importante e antecedente da subordinação de toda a propriedade privada ao destino universal dos bens da terra e, consequentemente, o direito de todos ao seu uso.103 Direitos dos povos 124. Hoje requer-se que a convicção do destino comum dos bens da terra se aplique também aos países, aos seus territórios e aos seus recursos. Se o olharmos não só a partir da legitimidade da propriedade privada e dos direitos dos cidadãos duma determinada nação, mas também a partir do primeiro princípio do destino comum dos bens, então podemos dizer que cada país é também do estrangeiro, já que os bens dum território não devem ser negados a uma pessoa necessitada que provenha doutro lugar. Pois, como ensinaram os bispos dos Estados Unidos, há direitos fundamentais que «precedem qualquer sociedade, porque derivam da dignidade concedida a cada pessoa enquanto   criada por Deus». 104

 

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